Este ensaio reproduz uma subseção do capítulo quarto que dediquei à obra de Dany-Robert Dufour em meu próximo livro intitulado “As ideias políticas no pensamento contemporâneo: Fundamentos para formação de agentes públicos pelas Escolas do Legislativo”, a ser lançado pelo Clube dos Autores em março de 2025. Esta obra reúne os conteúdos que escrevi sobre o pensamento político de nove autores: Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Paul Virilio, Slavoj Zizek, Robert Kurz, Dani-Robert Dufour, Maurício Lazzarato, Pierre Legendre e Byung-Chul Han. A obra, com 654 páginas, é produto de um curso que ministrei em outubro de 2018 na Escola do Legislativo da Câmara Municipal.
A ideia de antecipá-la com exclusividade aos leitores de Sler veio depois de ver a notícia de que, tanto Eduardo Leite (governador do RS) quanto Sebastião Melo (prefeito de Porto Alegre), foram à Holanda para se deslumbrar com iniciativas de projetos que combatem aqui, como mostrou reportagem de Luís Gomes em Sul21. É que as autoridades, mais uma vez, valorizando conhecimentos e profissionais de fora em temas e propostas que há muito tempo são defendidos aqui, exemplificam a face perversa que está assumindo o Estado, e esta passagem que escrevi sobre Dufour em meu livro parece definir muito bem os tempos que correm. Com isto quero dizer que, para entender onde estamos, é preciso ler Dufour urgentemente.
Ceci Juruá, em Dany-Robert Dufour – Na encruzilhada Filosofia [1], diz que começou a ler a obra de Dufour há mais de dez anos. “Na minha leitura, Dufour nos convidava a refletir sobre uma nova situação psíquica dos seres humanos nesses tempos dominados pelo pós-modernismo. Se é verdade, como pensou Marx, que a ideologia de cada indivíduo se vincula às condições materiais de vida, a mudança em curso nas relações sociais de produção, desde as décadas de 1970 e 1980, acabaria por levar ao aparecimento de novas subjetividades. Ou, nas palavras de Dufour: “Há uma mudança radical no jogo das trocas, que traz consigo uma verdadeira mutação antropológica. (…) Esse novo estado do capitalismo é o melhor produtor do sujeito esquizoide, esse da pós-modernidade.”
Ela constatou que no Brasil algo similar ocorria, já que a sociedade e o indivíduo viviam transformações. O sentimento de solidariedade cedendo ao egoísmo levará tudo para uma transformação geracional. Ela viu na obra de Dufour alternativas de compreensão porque ele dizia que, neste mundo, tudo tende a se tornar mercadoria, do ponto de vista dos poderosos. Em A Arte de reduzir cabeças[2], Dufour lembra que neste mundo “é preciso não apenas menos Estado, mas menos de tudo o que poderia entravar a circulação de mercadorias”[3]. Sua conclusão é que, sendo economista, “posso afirmar que a obra de Dufour foi valiosa para os economistas que com ela travaram conhecimento, permitindo ampliar possibilidades de interpretação da vida social e pessoal, até a fronteira dos desejos humanos, individuais, egoístas ou não (…) A leitura do conjunto da obra de Dany-Robert Dufour é indispensável para todo economista e para brasileiros devotados à construção de uma sociedade democrática e justa, solidária, empenhada na paz mundial.”
Ela cita também como obras fundamentais de Dufour A Cidade Perversa. Para ela, é uma obra-prima que disseca princípios da nova ordem mundial e dos Estados Unidos como centro cultural. “Entenderemos melhor este retorno ao capitalismo liberal se houver clareza filosófica sobre os traços culturais básicos que predominam nos Estados Unidos da América do Norte.”
A maior parte das informações que temos sobre a trajetória de Dany-Robert Dufour vem de seu site profissional (dany-robert-dufour.fr). Ali descobrimos que Dufour é um filósofo francês que nasceu em 1947 e, desde 2015, é professor universitário da Universidade de Paris 8, onde ensina Filosofia da Educação. Dufour também foi pesquisador do CNRS de 2000 a 2004 em uma equipe de psicanálise e diretor de programa no Colégio Internacional de Filosofia de 2004 a 2010, além de residente no Instituto de Estudos Avançados de Nantes entre 2010-2011.
Dany-Robert Dufour viaja regularmente ao exterior, ministrando palestras no Brasil e no México em sociedades de psicanálise. Seu trabalho se concentra em sistemas e processos simbólicos, aproximando filosofia da linguagem, semiologia, filosofia política e psicanálise. Ministrou já cerca de cem palestras, escreveu numerosos artigos e publicou pelas editoras Gallimard, Denoël e Calmann-Lévy dezoito ensaios e um romance. Escrito em 1999, o romance foi rejeitado pelos editores porque era “muito à frente de seu tempo” – tanto que foi chamado “O fim do Mundo e hoje… estamos quase lá”.
Além do ensaio, Dufour participa regularmente de atividades artísticas (literatura, música, teatro). Como filósofo, reconhece a influência em sua obra da tradição que vem de Platão, Santo Agostinho, São Tomás, Pico della Mirandola, Calvino, Descartes, Pascal, Nicole Bayle, Mandeville, Smith, Marx, Nietzsche, Freud, Adorno, Marcuse, Arendt, Anders Beckett, Artaud, Blanchot, Guimarães Rosa, Borges, Derrida, Deleuze, Lyotard, Foucault, Lacan, Leclaire e Benveniste. Seus contemporâneos são pensadores vivos que incluem Lebrun Benslama, Stiegler, Gauchet, Michea, Jappe e Latouche, citados em suas obras. Essa gama de influências repercutiu na adoção de alguns temas centrais em sua obra. Elas envolvem diversas obras ainda não traduzidas para o português, o que dificulta o acesso ao seu pensamento de forma a caracterizar sua evolução. Mas uma obra merece destaque.
Em A Cidade Perversa [4], Dufour desenvolve sua crítica ao capitalismo descrevendo-o como pornográfico a partir de um traço comum entre os dois: o excesso. É que Dany-Robert Dufour, desde suas obras anteriores, persegue o nascimento e a dissolução do sujeito moderno da modernidade, seja o sujeito do dever, teorizado por Kant, ou o sujeito do conflito, trazido por Freud. O sujeito do excesso é inspirado em Sade: “um universo no qual os indivíduos obedecem, inicialmente, a este mandamento supremo: Goze!” [5].
Dufour faz uma leitura a partir das façanhas do Marquês de Sade, autor de obras como Franceses, mais um esforço se quiserdes ser republicanos e Os cento e vinte dias de Sodoma. O paradoxo é que o excesso é a nova lei, novo contrato social que não é mais entre o burguês e o proletário, mas entre o hiperburguês e o consumidor proletarizado. A face real do neoliberalismo obsceno está fundada no egoísmo absoluto, na busca de um gozo que dispensa a anuência do Outro. “Como pensar que possa inspirar um laço social minimamente estável?”, pergunta na apresentação da obra o professor Romildo do Rêgo Barros.
Como bom psicanalista, interessa a Dufour reconstruir a história da libido de um ponto original, o ponto de vista filosófico. Sua tese de que o liberalismo se tornou um regime pornô, um regime de exploração industrial da libido, parte de suas três componentes: libido sciendi (paixão por ver e saber), libido sentiendi (paixão dos sentidos e da carne) e libido dominandi (paixão por dominar). Dufour recupera a concepção dos antigos, desenvolvida também por Santo Agostinho no livro X das Confissões, na linha direta da concupiscência referida pelo apóstolo João: a cobiça dos olhos, a cobiça da carne e o orgulho da vida. “É possível gozar não só na dimensão sexual, mas também na posse e na dominação… basta excitar uma dessas libidos, rejeitar qualquer limite que pudesse entravar essa excitação e deixar-se levar por patamares até o gozo”, diz Dufour [6].
Dufour busca o fundamento ontológico de atividades que vê como obscenas no terreno econômico, político e moral, que vão das práticas de conceder lucros indecentes, fora da medida, aos dirigentes de grandes empresas, salários mirabolantes, participação nos lucros dos estabelecimentos que considera obscenas porque não remetem para seus atores nenhuma vergonha: “já não é vergonhoso ganhar numa semana tanto quanto um assalariado durante a vida inteira” [7].
No campo do poder político, Dufour aponta que o Estado apoia uma política fiscal de redistribuição para os mais ricos, distribui enormes somas de dinheiro público para o setor privado de negócios, resultado de terem sido convocados a resolver a crise que atores econômicos provocam. Isso implica na reorientação das políticas públicas, onde reformas mercantilizam amplos setores da sociedade, como saúde, educação e cultura, aplicando-lhes as leis naturais do mercado, diz Dany-Robert Dufour. E quando isto acontece, o autor diz que estamos diante da pornocracia, quando o funcionamento pornográfico atinge o Estado. “A pornocracia é um regime em que o corpo do rei (e o corpo da rainha) é exibido em seu funcionamento pulsional” [8].
Dufour refere-se ao fato de que, na política, o que ocupa os meios de comunicação é menos a ação política dos governantes, mas sua vida privada. E cita como exemplo o caso do casamento do ex-presidente Sarkozy e Carla Bruni, elogiada por defender o casamento homossexual, seu aparecer com marcas Dolce & Gabbana ou Prada e essa contínua alimentação de imagens, suas longas pernas, capas de DVDs. “Seu mérito é grande: com efeito, ela revela o princípio central que comanda o todo e que pode ser enunciado numa simples palavra: goze.” [9].
Dufour assinala que a pornocracia pressupõe a difusão de lições de perversão, exibição pública de comportamentos culturais, políticos e econômicos pornoizantes. Mas assinala: “a cidade pode ser perversa sem que todos os indivíduos o sejam” [10]. Os cidadãos são convidados a adotar comportamentos perversos e a cidade, uma vez perversa, realiza uma espécie de seleção natural: segundo Dufour, quanto mais cenas pornoizantes forem difundidas, mais haverão de se transformar em modelos de comportamento. Para Dufour, esse sistema de perversão se institui pela exibição de discursos desinibidos, sem tabu, exatamente como o candidato Bolsonaro quando fala em exterminar a esquerda que fascina tanto seu eleitorado quanto um sexo mostrado cruamente é destituído de todo valor.
Estamos ambos diante de uma cultura sem princípios morais. “A exemplo desse sexo cruamente exposto, ‘livre’ de qualquer pudor cultural e podendo servir no instante, esses discursos desinibidos só valem quando são pronunciados. Visam uma eficácia comunicacional imediata, vale dizer, um efeito perlocutório em que a fala não é mais um dito a ser situado entre outros ditos, aspirando à verdade (o que remete ao logos), mas um simples ato ad hoc, visando conquistar uma posição entre os que interagem e que já são apenas considerados atores” [11]. Para Dufour, o que esses discursos passam é a mensagem que diz “Torne-se, como eu, ator da sua própria vida”, daí, tomado como tipo de lisonja, esse discurso funciona como uma lição de perversão, diz o autor.
Dufour critica os discursos que atuam por fascinação sobre a maioria, que fustigam atitudes refletidas, lisonjeiam as pulsões de poder absoluto, mesmo que isso seja apenas no imaginário. Isso se repete também quando a imprensa divulga atos de perversão sem pudor, colocando-se numa posição delicada porque, ao saturar o espaço público, deixam de cumprir sua função de informar. Eles se transformam em jornais especializados em escândalos, aqueles que apenas funcionam para dar o prazer da indignação com narrativas detalhadas dos bastidores políticos. “Bastariam algumas observações para mostrar que o conteúdo de boa parte dos jornais televisivos atuais evoca, rememora ou corresponde muito bem ao de certos jornais sensacionalistas de ontem” [12]. Esse denuncismo gratuito visando expor o erro dos políticos, seus vícios e perversões, nunca se refere ao contexto simbólico, político, jurídico ou moral, diz Dufour, daí sua fraqueza.
O discurso é o lugar da difusão de nossas perversões, diz Dufour. E seu princípio liberal fundamental é o do individualismo metodológico, doutrina que diz que não existe nenhuma outra realidade se não a do indivíduo e que todo o conjunto da ação social é o resultado da ação individual. Ela é coroada pela ideia de que as trocas com o outro sempre visam a maximização dos ganhos. Aqui, ser altruísta é ser condenado pelos outros, o que produz o recuo da common decency, a decência comum, senso moral que nos impele a agir para o bem. A decência não é mais um anteparo da perversão, somos todos incitados a adotar comportamentos que não correspondem ao nosso desejo. ”A democracia não passa do lugar onde estamos em permanente concorrência com os outros”, diz Dufour [13] .
Esta posição não é sem consequências. Aqui afirma-se que não existe um limite para os meus direitos, que sou singular e o outro nada pode fazer e que “sou sempre, real ou potencialmente, vítima do Outro”. Para Dany-Robert Dufour, esse princípio remonta a Sade, o primeiro a entender o que aconteceria se os princípios liberais baseados no egoísmo chegassem à sua conclusão, que ele resume da seguinte forma axiomática: “para que eu não seja vítima do Outro, para que tenha todos os direitos, para que assim seja definida minha irredutível identidade, é necessário e suficiente que o Outro seja a minha vítima” [14]. Essa é a máxima sadeana que, para Dufour, faz parte de diversos meios sociais predadores, do empresariado vigarista à “canalha política” e completa: “a atual incitação pornográfica da massa é múltipla: publicidade, canções, música, artes de demonstração das pulsões, exibição de atitudes políticas ou econômicas obscenas, programas de televisão berlusconizantes, informações permanentes sobre a vida sexual das celebridades, educação sexual segundo a internet, discursos das ciências sobre o sexo, discursos da ciência política higienista liberal eventualmente coroados por uma festa do orgasmo (data recentemente criada no Brasil)….essas lições de perversão, constantemente destiladas, visam criar uma espécie de repertório de gestos sexuais de base supostamente comuns a todos os seres “normais”[15] .
Nesta nova normatividade, o coletivo está constantemente intervindo no privado e, quando a pornografia se torna pública e coletiva, ela se expande para todas as esferas. “Se Freud nos ensinou algo, foi que a pulsão pode tomar os caminhos mais inesperados para alcançar seus objetivos”, diz Dufour. Incitação pornográfica da massa, formatação da pulsão em grande escala, mundo obsceno em que nos encontramos graças ao ultraliberalismo na economia, vitória do princípio do egoísmo adotado pelo pensamento liberal como credo central, “apresentando-o como virtuoso”. Dufour remonta mais uma vez suas origens ao século de Sade, os anos 1700, quer dizer, para ele, a verdadeira doutrina liberal é o sadismo, egoísmo levado ao extremo. “O estabelecimento dessa relação direta entre o liberalismo e o sadismo é uma hipótese que nunca foi sustentada com seriedade” [16], diz.
A aproximação tem razão de ser. Tanto o liberalismo como o sadismo são contemporâneos do século XVIII. Ambos falam em liberação das paixões e a proposta de Dany-Robert Dufour é que quanto mais o mundo se torna liberal, mais se torna sadiano. O abuso da liberdade tem um quê político e de uso pessoal, o de gestão dos próprios prazeres. É que Dufour vê que, ao mesmo tempo em que os grandes teóricos do século XVIII – Adam Smith, Benjamin Constant – apostavam no princípio egoísta, mas ao mesmo tempo, na defesa de princípios morais altruístas – somente Sade previu que o egoísmo não se acompanhava de altruísmo. Ele diz que Smith escreveu tanto A riqueza das Nações, com sua ética egoísta, como sua Teoria dos Sentimentos Morais, com sua defesa do altruísmo. Nada mais equivocado. O que relaciona Sade com Marx é o tema da próxima seção.
[1] Duplo Expresso
[2] Editora Campo Matemático. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.
[3] Dufour, p. 197.
[4] Civilização Brasileira, 2013.
[5] Dufour, p. 11.
[6] Dufour, p. 17.
[7] Dufour, p. 20.
[8] Dufour, p. 37.
[9] Dufour, p. 39.
[10] Dufour, p. 42.
[11] Dufour, p. 44.
[12] Idem.
[13] Dufour, p. 46.
[14] Idem.
[15] Dufour, p. 47.
[16] Dufour, p. 49.
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Foto da Capa: Dany-Robert Dufour / Reprodução