Há universidades fisicamente muradas, a própria arquitetura é originalmente hostil à sociedade. Nestas, dentro dos muros, das salas de aula, das bibliotecas habita um universo paralelo, à parte e apartado. Há outras nas quais a arquitetura é mais amigável, arborizada, ampla e integrada às ruas do bairro. Mesmo assim, quando os muros não são físicos, erguem-se paredes simbólicas. A separação física ou simbólica comunica limites e barreiras como se só entrassem ali os deuses do Olimpo intelectual ou os eleitos por eles. Há distintas camadas de exclusão e preconceito na vida acadêmica. Inúmeras. Mas este texto é sobre uma população excluída não apenas da universidade, mas também do mercado de trabalho: os negros, pardos e indígenas.
Eu sempre acreditei que a transformação precisa acontecer de dentro para fora. Bradar, gritar, apontar dedos e julgar de fora sobe mais muros. A mudança quando começa dentro das universidades pode partir de pequenas iniciativas e potencializar grandes transformações. As políticas públicas de cotas podem ser questionadas em alguns aspectos, mas possibilitaram esse tipo de transformação. Primeiro coloca para dentro dos muros e depois transborda. Foi assim que surgiu o projeto Rumos Mais Pretos, capaz de derrubar muros, romper barreiras e construir caminhos futuros para uma sociedade mais integrada. E nós precisamos falar sobre ele.
O Rumos Mais Pretos surgiu intramuros, a partir do projeto de extensão de uma professora da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Decom e PPGCOMIUFRGS). A Elisa Piedras, professora de Publicidade e Propaganda, percebeu que a política de cotas permitiu a entrada de negros, pardos e indígenas nas universidades, porém, os alunos formados dificilmente conseguiam uma colocação de destaque na área de atuação desejada. A angústia da professora foi canalizada para ação. Primeiro, protocolou um projeto de extensão para institucionalização da intenção de agir para mudar a realidade. E, a partir da iniciativa, encontrou pessoas com o mesmo propósito do outro lado dos muros. E assim nasceu o projeto que uniu inicialmente a UFRGS e a agência digital de Porto Alegre DZ Estúdio. Elisa propôs um programa de vagas de estágio para cotistas, mas acabou realizando bem mais do isto.
Os profissionais da agência e os professores da UFRGS se uniram para criar um programa de inserção de negros, pardos e indígenas no mercado de trabalho da publicidade e propaganda. Mais do que abrir vagas de estágio, o programa evoluiu para oferta de cursos, workshops e acompanhamento dos estudantes na primeira experiência profissional. O projeto está no segundo ano de realização e conseguiu em 2023 derrubar muitos muros. O primeiro uniu universidades concorrentes, pois houve a adesão da PUCRS e da Unisinos. O segundo integrou agências concorrentes para trabalharem juntas e organizarem o programa de formação, os workshops e o acompanhamento dos estudantes. O terceiro muro foi derrubado com a adesão ampliada do mercado publicitário: são 17 agências que vão oferecer 25 vagas neste ano.
A integração e colaboração entre universidade, mercado e profissionais contou ainda com o apoio da Associação Riograndense de Publicidade, a ARP, e vai resultar em um site no qual os estudantes que participarem do programa poderão ser encontrados por outras empresas que queiram contratá-los. Todos os alunos terão ali um portfólio e visibilidade para os seus trabalhos e perfil profissional. A dor da comunidade negra de ter sido invisível na propaganda durante décadas se transmuta no alívio de poder ter um espaço para ganhar qualificação e visibilidade profissional. Como enfatiza a professora Piedras: “É muito pouco para o que significa a dívida de reparação histórica com o povo negro no Brasil”.
Eu tive o privilégio de entrevistar a Elisa Piedras e o Felipe Rocha, publicitário e fundador do o GPNICRS- Grupo de Profissionais Negros na Indústria Criativa RS, no Vida Digital desta semana e conhecer em detalhes como funciona o programa, como os profissionais negros aos poucos ganham visibilidade e espaço no mercado e o quanto ainda precisa ser feito para projetos como o Rumos se multiplicarem para transformarem realidades em diversas áreas.
Ao final do bate-papo, eu tive a sensação de que, mesmo sendo ativa em fóruns de estudos de comunicação e sociedade, eu pouco ou nada conheço desta realidade. Fiquei pensando o quanto me sinto imatura para debater negritude ao ouvir a Elisa e o Felipe contarem sobre o Rumos Mais Pretos. Me questionei: estou usando as palavras certas, as minhas perguntas foram acolhedoras ou ofensivas, reproduzi estereótipos e preconceitos sociais ou respeitei a diversidade nas minhas falas. As respostas eu não sei, talvez eu tenha errado, sim, tenha cometido alguma gafe. Se aconteceu, eu por certo fui acolhida com afeto pelos nossos entrevistados porque sinto que os dois estiveram à vontade comigo e com minha dupla Juliana Fürstenau no estúdio. Nós tivemos o cuidado de construir perguntas abertas para deixá-los mais à vontade. A técnica jornalística foi meu salvo conduto ali naquela situação.
A imaturidade não se manifesta porque eu não possa falar pela dor do outro, quando há conhecimento, autoridade e propriedade, pode-se, sim, ter voz de representatividade mesmo ser pertencer ao grupo racial. Mas a verdade é que ainda precisamos evoluir demais na questão porque só vamos conseguir uma mudança efetiva quando os repertórios forem compartilhados com o maior número possível de pessoas, e, para isto, é necessário escuta. No Vida Digital, nós abrimos este espaço de fala para os especialistas. As falas organizam, estruturam, ensinam. É precisar mais espaços de fala e melhores estratégias para fazer as falas circularem. O aprendizado é contínuo e está em construção, em deslocamento. Portanto, a conexão alcançada pelo projeto é poderosa em permitir a escuta dos negros e dos especialistas, mas também é potente em autorizar que eu, você e todos nós, sem julgamentos inibidores, possamos falar termos equivocados querendo acertar. É preciso normalizar o erro como uma oportunidade para aprender como tomar rumos mais pretos na nossa sociedade. Os deuses do Olimpo, eu acredito, devem estar, lá do alto, orgulhosos!
Foto da Capa: Valter Campanato / Agência Brasil