Maria desliga a televisão e diz que quer falar comigo.
– Agora!
Paro de digitar no computador e olho sorrindo. “Lá vem alguma brincadeira”, penso.
Mas ela está séria.
As palavras confirmam:
– É uma conversa importante – informa. E ordena: – Senta no sofá!
Minha esposa diz ainda que não quer me ver com caderno e caneta nas mãos, “muito menos com o celular!”, dividindo a atenção com as notícias ou mensagens que chegam pelo WhatsApp.
Ela se senta ao meu lado e conta que temos uma tarefa a cumprir mais tarde, após o jantar.
– Vamos recapitular senhas. Quero que você decore ao menos a do banco e, também, que aprenda a fazer o Pix.
(Sim, caro leitor, prezada leitora, é constrangedor confessar, mas tenho que dizer que este sujeito aqui, de 63 anos, nunca fez um Pix e nem sabe como fazê-lo…)
Não gosto de receber ordens. E me rebelo. Com argumentos sólidos, claro. Conto que tenho coisas mais importantes para fazer à noite:
– Vou escutar os canais de YouTube gremistas. Quero saber sobre as chances de chegarem reforços e, também, sobre a situação do Quinteiros.
Maria não está para conversinhas.
– Eu disse que é sério!
– Mas por que tenho que decorar essa senha? – indago.
Maria explica e vou compartilhar a informação, mas, que você e todos os demais leitores me desculpem, terei que interromper momentaneamente a cena e voltar no tempo – 16 anos! – para contar sobre a primeira vez que levei Maria para jantar.
Dois dias após nos conhecermos no Carnaval, fomos a um restaurante japonês, elegante e caro (quase escrevi agora ‘e isso que a comida veio crua!’ Mas a piadinha já está batida e, obviamente, sem graça. Por isso, me controlei, mas não muito), no bairro da Vila Madalena, em São Paulo.
Foi um jantar incrível, com as horas correndo em um tempo só nosso. Quando a casa já estava quase fechando, pedimos a conta.
– Vamos dividir – disse Maria, por educação.
– Fui eu que convidei. A conta é minha! – disse. E prossegui: – Terás todos os dias do resto da tua vida para pagar contas em nossos jantares!
Bonito, né? Com uma frase, deixei claro para a Colombina que, em meu coração, nosso namoro já era para sempre.
Nem deixei que visse a conta e passei o cartão de crédito.
A máquina não aceitou.
De novo. Não deu certo.
Novamente.
Bloqueou o cartão!
Sem problemas. Eu tinha conta em três bancos.
Tranquilo, repeti o procedimento com o segundo cartão.
Não passou na primeira vez.
Nem na segunda.
Insisti na terceira. Eu tinha certeza dos números.
Cartão bloqueado!
O mesmo aconteceu com o terceiro.
Percebi que havia confundido as senhas e digitado nos cartões errados.
Gentil, Maria colocou a bolsa sobre a mesa e já foi retirando a carteira.
– Deixa que eu pago… – disse solícita, mas suspeitando que havia caído em algum golpe.
Pedi que esperasse.
– Meu amigo, tu podes chamar o gerente ou o dono do restaurante. Quero ver se posso deixar meu documento. Volto amanhã para pagar a conta.
Entreguei a identidade ao rapaz.
Não se passaram nem dois minutos e lá veio o garçom, acompanhado pela dona do restaurante.
– Mas é o Airton Gontow! – exclamou, para a minha surpresa.
E continuou:
– Você é um jornalista conhecido na gastronomia e na noite de Sampa. Já fez assessoria de imprensa para várias casas de amigos meus. Pode ir embora e voltar dentro de alguns dias para pagar a conta, já que amanhã estaremos fechados.
Saímos tranquilos e felizes do restaurante.
Peguei na mão da Maria enquanto íamos em direção ao carro.
Ela tinha entendido, no primeiro encontro, que estava ao lado de um homem atrapalhado, que confundia senhas, provavelmente esquecia cheques e que também algumas vezes sairia de casa esquecendo a carteira sobre a mesa da sala, mas que é trabalhador, respeitado e romântico.
Mas voltemos agora à cena inicial e à seriedade, à sisudez da minha esposa.
– Li no portal e agora vi na televisão que uma mulher foi sequestrada dentro de um estacionamento de uma loja de pets. Ela contou que o bandido colocou a arma na sua cabeça e disse: “Se você mentir ou errar a senha, eu lhe dou um tiro”. Disse que ficou tão nervosa que teve medo de esquecer ou digitar errado a senha.
Maria contou ainda que há pouco tempo uma moradora do nosso condomínio escreveu no grupo de WhatsApp que foi assaltada e precisou fazer um Pix.
– Você não sabe sacar dinheiro no caixa eletrônico. Não sabe nem a senha do cartão. Nem sabe fazer Pix. Podem te matar por isso.
Prometi que seria um aluno aplicado.
À noite, já enquanto comíamos uma pizza acompanhados por um bom vinho português, tentei decorar minhas senhas com a mesma concentração que tenho ao tentar aprender a declamar sem ler alguma poesia do Drummond ou cantar clássicos da MPB.
– Mas também quero que você ande com um papel com a senha do caixa eletrônico, escrita em código, para o caso de você esquecer na hora do nervosismo.
Maria ameaçou-me que, se perceber que esqueci o papelzinho em casa, vai comprar um colar, com um pingente oco dentro, contendo o pedaço de papel com os números da senha.
– Será como fazem com os idosos que saem de casa com o nome e número do telefone da família, para o caso de se perderem – disse.
– Só não pode ser prata ou ouro, que alguém pode arrancá-lo do meu pescoço… – respondi.
Agora já sei os números de cor.
Decorei apenas esses, já que não quero confundi-los com os do Wi-Fi, da porta eletrônica, celular, Facebook, Meu INSS, Apple, Folha, Estadão, Zero Hora e de tantas outras senhas que hoje protegem e infernizam as nossas vidas.
Maria está mais tranquila.
Ao menos até eu publicar esta crônica. É que não perguntei para ela o que os ladrões poderiam fazer se me pegassem e, na hora em que felizmente eu lembrasse a senha do cartão ou do Pix, descobrissem que na minha conta não há nenhum dinheiro para ser sacado.
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Foto da Capa: Freepik