O Frank Jorge canta assim numa das suas músicas: “Elvis na fase decadente/é bem melhor que muita gente”. Isso serve para avaliar o trabalho de muitos artistas que tiveram grandes picos de qualidade nas suas trajetórias.
Em geral, são percursos longos, e a alta qualidade de algumas de suas realizações acaba jogando contra eles mesmos, pois se espera que tudo o que façam tenha a mesma régua. No entanto, como alerta Frank, mesmo a criação mais fraca de um grande artista pode ser superior à dos seus pares.
Digo isso porque fui ver o mais recente filme do Woody Allen, Coup de chance. Não se trata de afirmar aqui que o cineasta esteja numa fase decadente. Seu filme é uma obra de um criador maduro, seguro dos seus recursos.
Como diretor, conduz a narrativa de maneira a nos envolver com o que se passa na tela. Vai aos poucos criando uma intimidade entre nós e os personagens. Tudo com um ritmo nem lento nem acelerado. A câmera flutua e vamos com ela sem perder o interesse um segundo.
Dirige os atores, muito bem escolhidos, de modo a extrair deles uma interpretação natural, sem artificialismos. Arrasa, como sempre, nas trilhas musicais.
Como roteirista, é mestre na arte da peripécia, aquele recurso descrito por Aristóteles na Poética como a virada na história que, nos grandes poetas da tragédia, pode vir acompanhada de um reconhecimento, de uma revelação sobre o destino das personagens.
É bem melhor mais esse Woody Allen do que a esmagadora maioria dos filmes contemporâneos. Pode-se dizer, contudo, que não figura no pódio dos melhores dos seus filmes. E quais são esses? Zelig, A rosa púrpura do Cairo, Match Point? Dá pra botar, e o leitor que gosta do Allen me ajude, mais outros tantos. Ah, o bergmaniano Interiores, Hanna e suas irmãs, Crimes e Pecados. É só colocar no google a filmografia dele e não para de aparecer coisa boa.
Nesse de agora, que foi traduzido como Golpe de Sorte em Paris, tudo gira em torno do acaso. A virada na vida da personagem principal se dá pelo encontro ao acaso com um antigo colega de escola.
Esse mesmo colega, escritor, teoriza sobre o peso disso que está alheio ao nosso horizonte e que aparece de repente para levar a nossa vida para um lado que sequer esperávamos. Ele e ela gostam da poesia de Mallarmé.
Esse poeta francês revolucionou a poesia quando lançou, no final do século XIX, Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, traduzido no Brasil como Um lance de dados jamais abolirá o acaso. O trecho que ficou famoso, na tradução de Haroldo de Campos, diz que um lance de dados jamais abolirá o acaso “mesmo quando jogado em circunstâncias eternas do fundo de um naufrágio”
O título do filme do Woody Allen, Coup de chance, dialoga com o Coup de dés, do Mallarmé. Não por acaso, é o poeta que une o destino dos dois personagens. Se a tradução brasileira sacasse a referência, talvez tivesse optado por Lance de Sorte e veria que não tem muita função ter colocado o “em Paris”.
Foto da Capa: Cenas do filme Golpe de Sorte em Paris / Reprodução do YouTube
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