Sou do tipo que gosta de observar pessoas em lugares públicos. Nada ostensivo. Com bastante discrição, especulo fantasiosamente sobre o que são, fazem ou pensam. Melhor ainda quando apanho trechos de conversas, frases que fazem sentido se eu der algum a elas. Me defendo dessa curiosidade dizendo que ela é sociológica: quero entender um pouco mais a dinâmica da cidade. E tem fundo de verdade, pois, como arquiteto, me interesso sobremaneira pelo modo como as pessoas vivem e se apropriam dos espaços públicos – e também privados – e, em contrapartida, de como esses espaços respondem a elas. Como dei para fazer poesia, essas observações também podem alimentar versos.
Outro dia tive um desses devaneios quando reconheci um notório empresário do mercado imobiliário, desses que adoram construir sobre o construído, no Café Piccolino, na Rua Félix da Cunha (foto da capa), em Porto Alegre. Refestelado em uma mesa da calçada era visível seu prazer em conversar com um amigo ou, vá saber, um empresário de outro estado (pelo sotaque) interessado em investir seu capital por aqui. Pesquei a frase em que dizia, orgulhoso, do charme daquele e de outros lugares da capital. Na minha cabeça de ficcionista imaginei que estava convencendo o interlocutor a investir em Porto Alegre.
Nunca vou saber se falava inocentemente ou se sabia que aquele casario em frente ao Shopping Moinhos de Vento escapou por pouco de ser demolido, que ele estava destinado a ir abaixo para que a rua fosse alargada e ficasse com a cara de uma insípida Avenida Protásio Alves. Conseguem imaginar que coisa mais sem graça?
Assim como aquele conjunto, muitos outros escaparam dessa prática demolidora graças à lucidez de defensores do patrimônio. A maioria é desconhecida; não eram valorizados, navegavam contra a corrente da mídia corporativa. Mas, nesse caso, sei dizer o nome dos salvadores: a família Azevedo Moura pediu e obteve o tombamento de seu próprio imóvel – coisa rara de acontecer. Mas acontece. Os Lutzenberger fizeram o mesmo para proteger a famosa casa da família localizada na Rua Jacinto Gomes.
Menos sorte teve o casario da Luciana de Abreu, ali perto do Café Picollino. E não só ele, centenas de imóveis de valor histórico foram abaixo para dar lugar a grandes edifícios. Vivemos numa cidade autofágica: imobiliárias fazem publicidade de bairros que vão deixar de existir pela sua própria ação. Mas eu não queria levar meu pensamento para esse lado. Naquela tarde estava focado nos salvados. Sim, uma cidade é feita do que é realizado e do que não o é. E, felizmente, muita coisa deixou de ser feita.
Eu começaria contando uma história inacreditável para os dias de hoje: na década de 1950 havia um projeto que os jornais chamavam orgulhosamente de Veneza Brasileira. A ideia era aterrar, construir docas de pedra e lotear as ilhas do Delta do Jacuí. Conseguem imaginar todas aquelas ilhas ocupadas por edifícios? Um laboratório francês chegou a construir em Grenoble uma maquete de todo estuário para estudar os efeitos de tal proposta e um concurso de arquitetura estava em fase de preparação. Não sei dizer por que não foi adiante, gostaria de saber mais dessa aventura. Descobri isso ao escrever sobre a Ponte do Guaíba para um bonito livro organizado para festejar seus 50 anos.
A propósito da ponte, fiquei sabendo pelos documentos que a historiadora Alice Trusz trazia para a produção do livro que fomos salvos de duas terríveis opções para cruzar o Guaíba: uma pela Vila Assunção e outra pela ponta do Gasômetro. Já pensaram se todo o trânsito rodoviário da BR-116 cruzasse a cidade para chegar na ponte? Ufa, escapamos. E não pensem que foi fácil, os debates foram acalorados. Do ponto de vista do dinheiro, vejam só, construir a ponte elevada onde foi construída não era um bom negócio para a cidade.
Uma outra história assustadora é a da construção da Primeira Perimetral – a do Túnel da Conceição – nos anos 1970. Quarteirões inteiros e muitos prédios importantes vieram abaixo. O mais chocante é que, pasmem, fazia parte do projeto derrubar o Mercado Público, o Chalé da Praça XV e o abrigo dos bondes que já não funcionavam mais para dar “fluidez ao tráfego”. E para mais fluidez ainda, em cima do muro da Mauá haveria uma via elevada (em São Paulo chamam minhocão) ligando a rodoviária ao Gasômetro (as fundações chegaram a ser executadas). No meio do caminho, uma descida de acesso para um grande estacionamento coberto feito onde? No lugar do Mercado Público.
Essa avenida foi projetada como se fosse uma rodovia atravessando o campo. Cortaria sem dó nem piedade o campus central da UFRGS com viadutos e alças de acesso. Também botaria abaixo a Chaminé e a Usina do Gasômetro. Mas não conseguiram! Um dos episódios mais conhecidos dessa guerra contra a I Perimetral é a do estudante que subiu, em plena ditadura, numa árvore da Av. João Pessoa para fazer as motosserras pararem. As árvores estão lá, passam bem.
E tem mais, muito mais. Teria que imitar Ruy Castro fazendo uma lista dos salvados, mas vou só lembrar de mais alguns impactantes – quem se interessar pode consultar a lista de imóveis tombados e listados nos sites do EPAHC, IPHAE e IPHAN –: no lugar dos parques da Marinha e Harmonia haveria uma plantação de pequenos edifícios e nada de parques; e também havia defensores convictos da necessidade de demolição do Theatro São Pedro e do Majestic Hotel, hoje Casa de Cultura Mario Quintana.
O que me levou a viajar nessa história enquanto saboreava um simples café? Acho que foi uma reação ao paradoxo de ver aquele cidadão elogiar um legado que na prática ele combate. Estava diante de mim um representante das forças que apagam as marcas do tempo em Porto Alegre. A desforra pode não ser nobre, mas meu café teve um sabor especial: o da vitória, ainda que pequena e parcial, contra pessoas como ele. Saí revigorado, pronto para contagiar você, leitor, para que não desista de Porto Alegre. Precisamos ser fortes, porque, imagino, ele também deve ter saído revigorado para mais um empreendimento imobiliário…
Foto da Capa: Acervo do autor.
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