Caetano Veloso tem uma canção que descreve o ofício do compositor popular. Chama-se “Festa imodesta”. Vale destacar esta estrofe inteira: “Acima do coração/que sofre com razão/a razão que vota no coração/E acima da razão a rima/E acima da rima a nota da canção/Bemol natural sustenida no ar/Viva aquele que se presta a esta ocupação/Salve o compositor popular”.
Primeiro, esse trânsito entre razão e coração. O racional está acima na criação do compositor. Ele está criando, produzindo um objeto criativo. É preciso usar a inteligência para organizar o texto. É necessário se valer da técnica e de algum conhecimento para ordenar os acordes, desenhar a melodia.
No entanto, a razão, mesmo estando no comando, vota, elege, aposta no coração. Pode-se dizer que aposta na sensibilidade, na intuição, talvez sabendo de antemão que sem isso não conseguiria fazer o trabalho.
Mas acima da razão está a rima, o trabalho estético. A sonoridade das palavras determina se tudo vai ou não se transformar em letra.
E, por fim, quem impera acima da sonoridade da palavra é a sonoridade musical, a nota. É ela que vai permitir que tudo isso vire uma canção.
A alquimia de transformar palavras e acordes em canção é o ofício desse compositor que recebe na música de Caetano o adjetivo, a especificação de popular. O termo pode estar em oposição a erudito. Há aquela distinção entre música erudita e música popular. É claro que muita gente já debateu e mesmo subverteu essa visão e divisão estanque.
Mas tomemos aqui a ideia e mesmo o fato de que há compositores com mais estudo da teoria musical e outros com menos. Há compositores que tocam de ouvido ou mesmo que compõem só cantando, não usando nenhum outro instrumento além da voz. E há, por outro lado, músicos que dominam um assombroso conhecimento de teoria, mas que não conseguem compor uma canção.
Lô Borges foi entrevistado pelo músico Nelson Faria no programa Um café lá em casa. Num dos cortes veiculados no YouTube, Nelson diz a Lô que a canção “Trem azul”, composta pelo Lô Borges, é usada em diversos cursos sobre harmonia como exemplo perfeito do estudo de acordes com empréstimo modal. Nelson Faria estudou nos Estados Unidos e tinha curiosidade se Lô Borges tinha consciência de que tinha criado o “Trem Azul” todo com esses acordes de sétima maior que “são exatamente os acordes de empréstimo modal, teoricamente falando”. A questão do entrevistador era se o compositor sabia ou intuiu isso.
Lô respondeu que estava sabendo disso exatamente naquele momento. Ou seja, não ter esse conhecimento teórico não o impediu de compor a sua canção na interação com o instrumento, com a voz, descobrindo o caminho por dentro da própria estrutura criativa que foi construindo. Também comentou que Tom Jobim, ao ouvir suas músicas, lhe disse que suas composições tinham muita qualidade e que, se estudasse, poderia ir muito longe.
Ainda sobre o conhecimento da teoria musical, Lô respondeu, um pouco incomodado, para uma outra pessoa que lhe cobrava estudar mais: “Eu faço música para os outros estudarem”. Essa é uma outra boa definição do compositor popular.
Foto da Capa: Lô Borges / Divulgação
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