Amor líquido, queda de referenciais de um pretérito de industrialização e os primeiros passos hesitantes em uma cibernética. Estas três circunstâncias resumem os tensionamentos presentes nos estudos psicanalíticos clássicos quando embarquei nessa, ainda na virada do milênio. Um pouco mais para cá, já como psicanalista, aquele cenário fazia indagar pelo desejo nas relações humanas e suas derivas.
Hoje, novos rumos e entraves pedem novas bússolas para seguir na tal práxis psicanalítica, tão mais complexa quanto mais multifacetado se torna o acontecer humano – sempre de linguagem, supomos. Nesse sentido, creio que, bastante acompanhada por colegas, ando atenta ao papel do constrangimento. Ainda existe? Como e quando? Para quem é da área, nada de mais, apenas uma forma de torcer a pergunta sobre quais são as margens e os diques possíveis na manutenção de uma vida desejante. Em outras palavras, ainda na mesma linha metafórica, quais escoamentos são interessantes ou não na manutenção de um desejo intransitivo, aquele que não se deixa tomar por um definitivo e ajustado objeto que colocaria fim à navegação. Afinal, se viver é impreciso, navegar é preciso!
No entanto, os objetos de consumo nos provocam certa confusão, como se fosse possível encontrar o Santo Graal. A falácia que se sustenta no último iPhone ou na última notícia – que, com sorte, não será falsa! – ou na última terminologia super über ajustada à mais recente teoria recém-criada. Vale para as ciências sociais também. E como vale! O mestre ideal do capital tem a carteira e a cabeça cheia de ideias e novas. Está nos memes e em autores contemporâneos a noção, às vezes tácita, às vezes desenvolvida, de que o capitalismo incide também como gestão do nosso sofrimento psíquico. Nessa linha fabril, consumir-estressar-medicar poderia ser uma boa paráfrase do comer, rezar e amar de outrora. Valeria indagar, contudo, se há alguma substituição em jogo. É que não é que não comamos – aliás, cada vez mais e de forma mais fetichizada – não é que não rezemos, pois também aí há um excesso que escoa no Estado e em áreas que se querem melhor laicas, como, por exemplo, a educação. Quanto ao amar, aí realmente, quiçá, a paráfrase proponha certa substituição, já que, não raro, o amor ao rivotril pode ser o mais estável dos laços.
Quando observamos um cenário de melancolia e/ou excessos de qualquer qualidade, diversas vezes nos desencontramos de uma pulsação de ordem mais erótica, mais viva. Não por nada, Freud opõe a sua famosa pulsão de morte[1] com Eros: outra nomeação das pulsões de vida. Mantendo a conversa, Audre Lorde – poeta negra, lésbica e ativista – colocava o uso do erotismo[2] como um poder extremamente díspar e distante da pornografia, uma vez que esta última está a serviço do patriarcado. Por outro lado, o erotismo estaria do lado da criação, em amplo sentido, muito além das relações afetivo-sexuais.
Na era de Trump, Milei e Bolsonaro, expoentes de uma pornocracia[3], estamos carentes desse erotismo que nos enlaça aos potenciais de vida. Afinal, o pornô só existe encaixado nas moralidades mais falsas. Quer dizer, aquelas que arbitram o que é imoral para o outro, reservando para si um domínio ilimitado. Que este time nefasto circule nas cúpulas do poder, mostra o quanto nossa vida desejante e erótica caiu na miséria. Afinal, o viva la libertad, carajo é para alguns poucos que vão meter o que quer que seja em quem quer que seja, terão licença para torturar, discriminar e acumular sem limites.
Diante de tudo isso, o que nos constrange? Parece paradoxal, mas é a pergunta capaz de salvar muito mais do que o nosso erotismo.
[1] Freud, Sigmund (1920). Além do princípio do prazer. Porto Alegre: L&PM, 2016.
[2] Lorde, Audre. “Usos do erótico: O erótico como poder”. In: Irmã outsider. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
[3] Dufour, Dany-Robert. A cidade perversa: liberalismo e pornografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
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Foto da Capa: Gerada por IA