Às vezes, algo que faz parte da nossa vida vira paisagem – existe, como se não existisse mais dentro da gente. É como uma parte do todo que, por alguma circunstância, torna-se o todo, a partir de um novo olhar. Descoberta interessante, construída pelas lembranças.
Foi o que me aconteceu, recentemente, quando estive em Imbé (RS), praia dos veraneios da infância, um pouco menos na adolescência e que voltei a frequentar na última década. Participei de um protesto, em forma de passeata, que visava alertar a população para uma absurda obra, já iniciada em Xangri-lá, praia próxima dali. Arquitetada na base de costuras e negociações políticas e financeiras, a obra desviará todo o esgoto das praias de Xangri-lá e Capão da Canoa para despejo no Rio Tramandaí. Esse rio margeia Imbé e Tramandaí, bifurcando-se em lagoas e desembocando no mar. Nem vou falar das consequências desse descalabro. Desastre ambiental resume.
Durante a passeata, ela estava ali ao lado, nos acompanhando – a Lagoa do Imbé. Já há muitos anos, sua margem foi cercada e a vegetação esconde, tanto sua beleza quanto um belo pôr do sol. Enquanto eu caminhava, fui construindo, com as lembranças de infância, a antiga paisagem dessa lagoa. Minha família tinha casa numa das ruas que terminavam nela. Sou do tempo em que as crianças brincavam “soltas” pelas redondezas. Talvez, porque estávamos sempre em grupo entre irmãos e vizinhos, pouca vigilância dos pais se fazia necessária. Circulávamos pelas calçadas, brincávamos nas casas e quase todo dia visitávamos a lagoa. Lá tomávamos banho, “caçando” conchinhas, peixinhos e caranguejos com uma lata sem fundo. A lagoa estava sempre ali, linda e tranquila, como se fosse o pátio de uma casa vizinha.
Nossa casa ficava um pouco longe do mar, mas a proximidade da lagoa supria totalmente nossas necessidades de contato com a água e toda a energia que ela nos proporciona. Apesar de sua evidente ligação com o rio Tramandaí e com o mar, para mim a lagoa era aquele pedaço que contornava o horizonte em frente, com sua iluminada imensidão. Era um pátio generoso, onde eu brincava e via o dia começar e terminar.
O trajeto da passeata atravessou a ponte entre Imbé e Tramandaí, protestamos em frente à Câmara de Vereadores, Prefeitura e Fepam. Seguindo minha viagem subjetiva, mergulhada em memórias, percorri na imaginação toda a extensão da “minha” lagoa, agora incorporando o Rio Tramandaí e o mar, que de um lado é o mar de Imbé e do outro, de Tramandaí. Lembrei que em direção ao mar havia ainda outra ponte, que foi destruída há alguns anos. Era a ponte das sardinhas, onde nos levavam para pescar. Era um lugar lindo, sempre repleto de pescadores de todas as idades, com todo o tipo de anzóis, iscas, baldes e pescados.
Essa ponte em si era um mundo à parte, ligando Imbé aos saudosos cômoros de areia de Tramandaí. Logo adiante, aonde as águas do mar já se misturam, os botos faziam seu espetáculo e os pescadores com suas tarrafas deixavam a cena mais divertida.
Como um alento, os botos ainda estão ali, fazendo parte de um ecossistema que eu sempre admirei, mas que está se ressignificando e adquirindo uma nova dimensão. Sinto que, agora, há um elo dentro de mim, ligando as memórias da lagoa com as do rio, das pontes, botos e mares. Talvez esse elo tenha se forjado pela força do sentimento de perda que a obra do esgoto trouxe como ameaça.
O ano de 2024 está sendo difícil para o meio ambiente e para todos nós que, de alguma forma, desenvolvemos um vínculo com a natureza. Existem situações que não podemos naturalizar. Jogar no “quintal do vizinho” o esgoto, que não se soube dimensionar, nem arcar com os custos do tratamento, “é de última”, como se diz na gíria. Moradores e veranistas de Tramandaí e Imbé estão se unindo e tentando barrar definitivamente a continuidade desta obra.
Aproveito para pedir a quem estiver lendo esse texto: ajude a divulgar esse acontecimento tão nefasto e que ainda pode ser dirimido pela força da opinião pública.
Jussara Kircher Lima é psicóloga. Após se aposentar do serviço público, tem se dedicado à escrita, em especial nos seus principais temas de interesse: literatura, psicologia e políticas públicas. E-mail: jussaraklima@gmail
Foto da Capa: Heloise Martins / Projeto Botos da Barra / UFRGS / Ceclimar
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