NOTA INTRODUTÓRIA: Se você não leu o texto da semana passada, pode ficar meio intrigado, então recapitulo brevemente que decidi fazer uma experiência diferente neste mês de outubro e decidi dedicar as colunas até o fim do mês à publicação de contos horror de minha própria autoria. Os desenhistas no Instagram costumam chamar isso de “inktober”: um desenho por dia até o mês de outubro. Como sou menos disciplinado como desenhista do que como escritor, fiquem com o meu “writober” de histórias de terror. Espero que curtam.

E então o Senhor disse a Satanás:

De onde vens?

 E Satanás respondeu ao Senhor e disse:

 De rodear a terra e passear por ela.

Jó, 1:7

Vindo da sacristia, o padre foi até o altar e fechou com um baque abafado a Bíblia encadernada em couro que repousava sobre a mesa. Perdeu mais alguns segundos alisando a toalha branca de linho. As fímbrias do tecido afagavam o tapete vermelho que, partindo daquele ponto, atravessava o centro da nave.

Bocejou. Percorreu os cem metros da ala leste e chegou à porta principal. Sacudiu as grossas correntes que trancavam a entrada, puxou o cadeado para baixo duas vezes e retornou pelo mesmo caminho. De passagem, ergueu uma das velas caídas no nicho frente à imagem de Cristo crucificado.

Voltou à sacristia e afrouxou o colarinho clerical enquanto passava para o banheiro. Lavou as mãos minuciosamente, o polegar da direita esfregando a palma da esquerda. Jogou água no rosto e voltou, sem se secar, para a nave. Repetiu seus passos até a metade do corredor e virou à esquerda. Quando estava à frente da porta que levava à casa paroquial, virou a cabeça para uma última olhada e seus músculos se eriçaram, retesados em um movimento instintivo de recuo.

Havia um homem na nave, sentado em um dos bancos de madeira. Um homem de cabelos brancos bastos e desgrenhados. Um homem vestindo casaco de couro preto sobre camisa também preta, com a gola frouxa caindo sobre si mesma e deixando à mostra um pescoço branco no qual avultava uma cicatriz da grossura de um dedo, acastanhada como mancha de ferrugem. Um homem improvavelmente instalado no mesmo caminho pelo qual o padre já havia passado três vezes nos últimos 10 minutos, com a igreja trancada.

– Posso ajudar? – perguntou o sacerdote, enquanto se aproximava.

O homem virou-se em sua direção, o rosto oculto pelos óculos muito escuros – destoavam do cabelo –, e respondeu, com uma voz rascante de enfisema e incolor como se vinda de um sintetizador eletrônico.

– Estou só olhando.

A resposta e a maneira indolente como o recém-chegado a proferiu desconcertaram o padre. Aproximou-se.

– A igreja está fechada, meu senhor. Não sei como entrou, mas vou ter de pedir que saia. Estaremos abertos a partir das 7h de amanhã, para a primeira missa.

– Eu posso ficar. Tenho autorização – retrucou o homem de cabelo branco.

– Não estou brincando, senhor. Conheço os administradores de um albergue próximo. Se o senhor precisa de um lugar para passar a noite, estou disposto a acompanhá-lo até lá – disse o padre.

– Não estou passando a noite, estou passando férias. E tenho autorização do seu superior.

– Ninguém da diocese me telefonou – respondeu o sacerdote, o tom de voz já bem pouco cristão.

– Seu chefe e eu temos um acordo, acólito. Eu banco o lixeiro e de tempos em tempos ele me concede umas férias e trânsito livre por qualquer parte. Não se preocupe. Não roubarei nada. Não há nada aqui que eu já não tenha visto. Na verdade, não há mesmo nada aqui que eu queira.

Pelos olhos do padre passou um brilho de indignação.

– Tenho de pedir que o senhor se retire.

O estranho não deu mostras de ouvi-lo.

– Ser o faxineiro do porão cansa, acólito. Mesmo alguém como eu precisa descansar, às vezes. Desde que, é claro, eu volte para continuar meu trabalho, já que ele não se vira muito bem sem mim.

O padre não disse nada. Lábio inferior descaído, olhava para a saída e para o imenso cadeado com o qual ele próprio havia se trancado dentro da igreja com o estranho.

– Já houve outras vezes. E, por incrível que pareça para você, sem que eu estivesse lá, as transgressões diminuíram. Vocês se acostumaram a pensar em mim como rebelde, mas as vezes em que realmente me rebelei, foi me concedendo o direito da deserção, e em todas elas o que se viu um turbilhão formidável. Toda vez ele entra em pânico quando parece que vocês estão a um passo de ser livres.

A voz mecânica subiu pelas paredes ornadas com reproduções da via dolorosa até bater no teto em abóbada, mostrando São Miguel triunfante em sua armadura romana. O estranho olhou para cima, examinando a imagem com algo semelhante a um fiapo de atenção. Sacudiu a cabeça.

– E em todas as vezes ele me encontrou, me acorrentou e me levou de volta.

O padre tentou dar um passo para trás e não conseguiu. Sentiu-se parte do solo, seus pensamentos desconectados de seu próprio corpo, transformado agora em outra coluna na nave da igreja. O desconhecido prosseguiu:

– Mas o senhor é novo demais para saber disso.

O homem se levantou da postura desleixada com que estava jogado no banco da igreja. Só então o padre percebeu o quanto era alto, mais de dois metros, uma massa esguia e indistinta a se aproximar lentamente, as mãos finas e brancas pendentes ao longo do corpo. A pele era ao mesmo tempo luzidia e sulcada de finos rastilhos rugosos que partiam da curva inferior dos óculos escuros em direção aos lábios gretados. O homem chegou o rosto próximo ao ouvido do padre, que recuou a cabeça instintivamente, não a ponto de deixar de ouvir o sussurro cheirando a murta e a mofo que o estranho lhe pendurou à orelha esquerda.

– Vou lhe contar um segredo, acólito. Talvez um dia em escancare os portões, e nesse dia quem terá a perder será o seu lado. Ele está velho, e sem esse artifício de coerção pelo medo, pelo medo de mim, o poder dele sobre vocês seria pífio.

O padre finalmente conseguiu se mexer. Deu dois passos à frente, os braços a tremer como postes de aço em dia de vento. A voz saiu desafinada.

– O senhor não passa de um hippie vagabundo insolente, e eu vou chamar a polícia.

Começou um recuo anestesiado. Não dera o segundo passo quando o estranho, em pé, com um esgar desagradável, o cabelo platinado lustroso e duro como se moldado a gel, levou a mão aos óculos e os retirou com um gesto pesado.

O padre olhou em seus olhos.

E viu.

Quando a luz do dia entrando pelos vitrais da igreja devolveu-lhe a visão, descobriu-se jogado no tapete, fetal, sozinho, sentindo uma presença incômoda grudada em sua pele, como respingos de névoa.

Fechou os olhos e tentou rezar, mas algo havia se partido no nicho mais íntimo de sua fé. Sentia medo, frio e algo mais perigoso. Com todas as noções que havia feito ao longo dos anos sobre inimigos e adversários, uma tristeza infinita parecia assombrá-lo. Com o rosto colado à superfície abrasiva do tapete cheirando a eras, chorou ao compreender por que o estranho havia escolhido justamente sua igreja.

Por baixo da vaga sensação de sonho que a experiência lhe deixara, emergiu certeza de que o desconhecido buscava abrigo somente nos lugares em que Deus não estava.

Imagem da Capa: Reprodução da pintura São Wolfgang e o Diabo, de Michael Pacher (1475)