Todo o ano, o 11 de setembro nos remete a 2001 e ficamos relembrando onde estávamos, o que fazíamos no momento do ataque às torres gêmeas nos EUA. Eu estava no computador lendo uma entrevista do escritor Michel Houellebecq, que o meu colega do Digestivo Cultural, Paulo Polzonoff, mandara para o nosso grupo de colunistas, quando recebi um telefonema me alertando sobre o atentado. Fui para a TV assistir o que nunca mais se apagará da minha/nossa memória. A entrevista de Houellebecq era sobre seu novo romance, Plateforme, para a revista Lire daquele mesmo mês de setembro negro. Vejam um trecho.
Lire – O senhor escreve também: “A humanidade me repugna”.
M. Houellebecq – É claro que existem vítimas dentro dos conflitos do Terceiro Mundo, mas são eles que provocam estes conflitos. Se isso os diverte, o fato de estarem sempre se matando, estes pobres imbecis, deixemos que se matem. Os nacionalistas são primatas. Se as pessoas são suficientemente imbecis em sonhar com uma Grande “Serbie”, que eles morram, é o melhor que eles têm a fazer. E os culpados não são os ditadores, são os indivíduos de base que só pensam em brigar. Eles adoram ter um fuzil nas mãos, eles amam matar, eles são ruins. Qualquer um que pega uma arma para defender uma causa, seja ela qual for, me parece essencialmente desprezível. Eu tenho uma grande admiração pelos tailandeses que evitaram se envolver em todas as guerras que os entornavam.
Lire – Às vezes, é preciso se defender?
M. Houellebecq – Eu diria que não. Enfim, sim, sim… é preciso se defender. Mas nenhum beligerante terá jamais minha simpatia. Eles têm tal prazer em matar. São essencialmente grotescos.
Lire – Quando o senhor descreve a violência dos bairros e em particular a nova cidade de Evry, cercada por hordas de bárbaros, o senhor tem um discurso “securitário”.
M. Houellebecq – Ah, isso… isso não é novo… é o meu lado “chevénementiste!” É evidente que a polícia deve agir quando as pessoas têm um comportamento que não é conforme o estabelecido moralmente. A manutenção da ordem é uma coisa normal. Não há razão para estar ameaçado na vida cotidiana. No romance existe este aforismo que eu gosto muito: “A delegacia é um humanismo”. Isto quer dizer, eu não sou tão repressivo, como homem. A abolição da pena de morte é muito boa… mas eu não faço disso uma questão de princípios. (…)
Eu estava frente à TV, segurando as lágrimas de estupefação e só me lembrava do que acabara de ler: “Não há razão para estar ameaçado na vida cotidiana.” Dois dias depois, a Agência Estado publicou: “Há vários meses, circula no Oriente Médio um videoteipe no qual o saudita Osama Bin Laden recita um poema sobre o atentado contra o submarino americano USS Cole em Áden, no Iêmen, que matou 17 militares americanos, e depois faz um chamado às armas: ‘A todos os combatentes: seus irmãos na Palestina estão esperando por vocês, é hora de penetrar na América e em Israel e atingi-los onde dói mais’.”
Julio Daio Borges, o editor do Digestivo Cultural, mandou, então, para o nosso grupo, uma análise do professor de Relações Internacionais e Diretor do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS, Paulo Fagundes Vizentini: “O mundo do pós-guerra fria, ao contrário do que muitos analistas afirmaram, é estruturalmente instável. O cenário internacional, literalmente ‘privatizado’, é hoje um excelente campo de ação para grupos de todo tipo, muitas vezes confusos, mal orientados ou manipulados. O irracional, num quadro de crise, ganha autonomia. Como disse Goya, ‘o sono da razão engendra monstros’.” É o que já anotara também, em seus Cadernos do Cárcere, o filósofo Antonio Gramsci, quando esteve preso nos porões da ditadura fascista italiana, de 1926 a 1937: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”.
Fiquei pensando que nas imagens dos boeings se arremessando contra as torres do World Trade Center bastavam em si mesmas para entendermos o que significa fanatismo. Um inimigo impalpável, uma força do mal que nos atinge onde mais dói, porque não existe qualquer explicação possível, é o irracional, o monstro desperto. Eu pensei também que uma catástrofe natural, como um terremoto, um furacão, que dizima a vida de milhares de pessoas e destrói cidades, tem o poder de nos consternar, mas jamais vai nos causar a dor que uma ação terrorista nos causa. Pois essa é a dor da impotência e do medo, muito medo da maldade de um humano. Depois de 23 anos, já nem sei mais se dá para separar as coisas dessa forma, pois as catástrofes climáticas às quais estamos sendo submetidos já comprovaram não ser naturais e, sim, resultado da irracionalidade e da maldade humanas. Ver pessoas ateando fogo nos campos, nas matas, devastando biomas, matando indígenas, animais e rios, como vimos nas últimas semanas, nos revela cada vez mais o horror na sua face nua e crua.
Mas milhões de pessoas, e também empresas, estão entendendo, agora e cada vez mais, a ameaça limite em que vivemos. Cresce, no mundo todo, um movimento de responsabilidade social e climática, ainda que muitas vezes irresoluto, pois a tarefa é realmente hercúlea. Estamos correndo contra o tempo e precisamos, urgentemente, saltar para uma prática mais ampla, além do discurso. Os donos do capital e do poder resistem, sustentados por suas hordas de fanáticos, como disse Houellebecq. Vemos muitas coisas piorarem, ao invés de melhorarem, com mais guerras hediondas, conflitos e violência em todo lugar. Tive uma aula com o sociólogo e filósofo Michel Maffesoli*, estudioso da pós-modernidade, em que ele disse: “Existe um desespero inconsciente na oligarquia político-midiática. Esses atores pressentem, não de maneira consciente, que o fim deles está próximo. Quando isso ocorre, as pessoas se tornam, de certa forma, mais violentas – combate de retaguarda. Isso pode ser considerado o momento de saturação para o poder vigente.”
Os monstros estão soltos há mais de 100 anos. Não há mais máscaras, nem qualquer ilusão. Tudo está posto e é mais do que hora de superarmos toda essa barbárie. Temos direito à vida, à natureza, à paz, à infância, ao amor.
*Curso de pós-graduação online em Ciências Humanas na Pontifícia Universidade Católica/RS, que estou concluindo em novembro próximo.
Foto da Capa: Ria Sopala / Pixabay
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