A apropriação cultural é um fenômeno complexo que envolve o apoderamento de elementos culturais de grupos historicamente marginalizados por parte de grupos dominantes. No contexto da música brasileira, o samba emerge como um exemplo emblemático desse processo, no qual a cultura afro-brasileira foi inicialmente marginalizada, mas posteriormente apropriada por artistas brancos que buscaram tomar para si essa estética e simbolismo.
O samba e suas raízes afro-brasileiras
O samba tem suas origens nas comunidades negras do Rio de Janeiro, no início do século XX, especialmente nas áreas de morro e subúrbio. Ele é resultado da fusão de diversas manifestações culturais africanas trazidas pelos negros escravizados, como o batuque, o lundu e o partido-alto. Essas influências africanas são evidentes na estrutura rítmica e melódica do samba, bem como em suas letras, que frequentemente abordam temas da vida cotidiana e da resistência negra.
A marginalização inicial
Nos primeiros anos do século XX, o samba enfrentou forte resistência da sociedade branca e das elites brasileiras. Era frequentemente associado à marginalidade, à desordem e à falta de moralidade. Sambistas negros eram perseguidos pela polícia, e o simples ato de um negro andar com um pandeiro na rua podia ser motivo para ser preso pela Lei de Vadiagem. Essa criminalização reflete o racismo estrutural presente na sociedade brasileira da época.
A apropriação pelo mercado cultural
Com o tempo, o samba começou a ser reconhecido por sua riqueza estética e passou a ser incorporado pela indústria fonográfica. Artistas brancos, como Ary Barroso, começaram a adaptar o estilo musical para um público mais amplo, incorporando elementos sinfônicos e ufanistas em suas composições. Essa adaptação, no entanto, muitas vezes resultou em um “embranquecimento” do samba, afastando-o de suas raízes afro-brasileiras e transformando-o em um produto cultural consumível para as elites brancas.
O impacto da apropriação sem limites (e com estratégia)
Nos anos 1990, o termo “pagode” passou a ser utilizado pela indústria da mídia de forma pejorativa, visando distinguir o samba tradicional, associado às rodas de samba da periferia e à cultura afro-brasileira, de uma versão mais comercializada e massificada do gênero. Essa diferenciação refletia uma tentativa de separar socialmente o que era considerado “de valor” do que era visto como “menor”, muitas vezes com base em preconceitos de classe e raça.
A apropriação cultural se manifesta quando elementos de uma cultura marginalizada são absorvidos por grupos dominantes, muitas vezes sem reconhecimento ou respeito pelas origens. No contexto do samba dos anos 90, observou-se uma apropriação de elementos da cultura negra e periférica pela indústria musical, que os transformava em produtos de consumo para públicos de classes médias e altas. Essa dinâmica reforçava a separação entre o que era considerado “autêntico” e “popular” e o que era visto como “sofisticado” e “elitizado”.
Os números e o medo da “elite branca”
Quando os números mostram o poder da cultura preta, como ocorreu no mercado do samba nos anos 90, fica evidente o medo da elite branca, que há décadas havia se apropriado de uma linguagem cultural que no início abominava.
Raça Negra: Formado em São Paulo em 1980, o grupo foi um dos pioneiros do pagode romântico. Com sucessos como “Cigana” e “Cheia de Manias”, alcançou grande popularidade, vendendo mais de 16 milhões de discos. Apesar do sucesso comercial, enfrentou críticas de sambistas tradicionais que viam sua música como uma diluição do samba original.
É o Tchan!: Formado em 1994 por Beto Jamaica e Compadre Washington, o grupo trouxe o pagode baiano para o cenário nacional, incorporando coreografias e elementos do axé. Com mais de 16 milhões de cópias vendidas, foi um dos maiores fenômenos culturais da década de 1990. Entretanto, sua abordagem foi vista por alguns como uma comercialização excessiva da cultura popular.
A resistência negra e a reafirmação cultural
Apesar da apropriação e da marginalização, o samba continuou a ser uma forma de resistência e afirmação da identidade negra. Compositores e intérpretes negros, como Clementina de Jesus e Candeia, mantiveram viva a tradição do samba de raiz, valorizando suas origens e resistindo às tentativas de “embranquecimento”. Além disso, movimentos como o samba de bumbo, em São Paulo, e o partido-alto, no Rio de Janeiro, continuaram a preservar as características afro-brasileiras do gênero.
A década de 1990 foi marcada por uma transformação no samba, com a ascensão do pagode como um fenômeno de massa. Enquanto alguns viam essa evolução como uma democratização da música popular, outros a encaravam como uma apropriação e diluição da cultura afro-brasileira genuína. Essa dinâmica evidenciava as tensões entre a comercialização da cultura e a preservação de suas origens autênticas.
A história do samba ilustra como a apropriação cultural pode ocorrer em contextos de desigualdade racial e social. A partir de uma forma de expressão cultural marginalizada, o samba foi apropriado por artistas brancos e transformado em um produto cultural mainstream, muitas vezes desassociado de suas raízes. No entanto, a resistência e a afirmação da identidade negra garantiram que ele continuasse a ser uma expressão autêntica da cultura afro-brasileira.
Referências:
Muniz Sodré. Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular brasileira.
Alma Preta: Apropriação Cultural: qual é o limite entre brancos e negros.
Wikipédia: Samba de bumbo, Partido-alto, Pixinguinha, África Brasil.
Rodrigo Rodrigues é músico, artista plástico, designer, produtor artístico e cultural, com 18 anos de experiência, é fundador da banda Bloco do Bronx, da marca de personalização e designer criativo Pretanidade Urban, da produtora de eventos e identidade visual PraQProduções. Sua trajetória contempla a atuação na área de Marketing e Vendas de Vonpar (Coca-Cola) e AMBEV (PEPSI) e Gestão da Qualidade por 13 anos, pelo GRUPO GPS de: Braskem, Odebrecht, Petrobras, Arlanxeo e INNOVA (Indústria petroquímica). (@rodrigobronxoficial)
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