Chega o final do ano e com ele os inevitáveis inventários. Entre perdas e ganhos, 2023 termina com saldo positivo, não fosse o Noé ter virado estrelinha.
Noé foi resgatado na rua ainda muito bebezinho e ficou conosco por quase seis anos. Era o cãozinho mais terrível e mais amoroso do mundo.
Pra se uma ter uma ideia do quanto era especial, uma vez ele ficou amigo de uma gaivota e me fez refletir sobre amizade.
Durante algum tempo levávamos ele à praia todas as manhãs bem cedinho. Sempre chegava cheio de energia. Corria de um lado para o outro incontáveis vezes. Brincava nas ondas, rolava na areia e ficava por alguns minutos contemplando o horizonte. Um dia ele chegou, sentou e ficou olhando para o céu. Algum tempo depois chegou uma gaivota. Ela começou a voar baixo de uma ponta a outra da praia. Ele foi atrás. Essa cena se repetiu dia após dia com a mesma gaivota cinza. Não era uma casualidade. A gaivota era diferente das demais e era sempre a mesma a se aproximar. Ele latia, ela grasnava. Assim eles brincavam. Ele na terra, ela no ar. Pra lá e pra cá.
Tão diferentes, porém capazes de uma amizade tão pura. Cada um dava o que tinha. Penso que talvez ele quisesse saber como seria voar, e ela tentava imaginar a sensação de correr na areia. De certa forma, na dita irracionalidade animal, entendiam as limitações um do outro.
Um dia a gaivota não apareceu. Noé ficou sentadinho na areia olhando pra cima, e nada. Neste dia ele não correu, não quis brincar. As manhãs na praia nunca mais foram as mesmas.
Quando o Noé partiu acho que me senti como ele quando deixou de ver a gaivota. Meus dias já não eram os mesmos. Não pensei que pudesse sentir tanta dor no coração pela partida de um cãozinho.
Ainda hoje dói. Estou escrevendo e chorando ao lembrar da última vez que o vi com vida.
Agora conto outro capítulo desta história.
Três meses depois da morte do Noé, um gatinho negro chegou na nossa casa. Também foi resgatado da rua ainda muito pequeno. Veio para fazer companhia para nossa gatinha branca que, assim como eu, ficou desolada quando o irmão canino desapareceu.
Chico é o nome do gatinho preto. Ele agora está com quase sete meses e tem uma personalidade completamente diferente da outra felina da casa. Tsuki é gata. Chico, não tenho certeza…
Chico tem as mesmas manias e comportamentos que o Noé tinha.
Dorme de barriga pra cima com a cabeça virada para o lado. Me segue pela casa. Dá cabeçadas na minha mão quando estamos no sofá pedindo cafuné. Morde os pés dos móveis. Come as pontas dos tapetes. Fica em frente a porta do quarto pela manhã esperando a gente acordar. Faz xixi dentro de casa, puxa a ponta da minha meia, lambe meu rosto, corre atrás da bolinha e ama pão de leite.
Não me julguem, mas eu fui ler sobre o que diz o espiritismo sobre a morte de animais. Segundo a doutrina, eles podem reencarnar. E o processo é rápido.
Não vou dizer que sim, muito menos que não, só sei que Chico não é um gato convencional e eu fico aqui com minhas divagações.
Se Noé entendia tão bem a gaivota, pode ser que um dia tenha sabido voar. Diante do grande mistério da vida, quem sabe ele não esteja hoje experimentando como é viver a miar.
Se Chico falasse, talvez eu teria a resposta, porém me contento que ele tenha me escolhido como amiga outra vez.
Meus dias estão felizes de novo.
Chico é o “gatinho” mais terrível e mais amoroso do mundo.