Esta semana rolando em scroll o Instagram parei em um vídeo do Site Mundo Negro, com uma entrevista de Conceição Evaristo para o Itaú Cultural, na plataforma Ancestralidades negras, que tive a honra de atuar como pesquisadora de narrativas emergentes. O trecho diz:
“Me incomoda muito esta questão de dizer: Se você estudar, se você estudar, você consegue. Não é assim para todo mundo. Ah, mas você conseguiu? Eu estou com 70 anos. Então foi preciso chegar 70 anos para conseguir? Você entende?”
Corto para o Tik Tok onde em scroll também uma mulher branca, visivelmente de classe social alta, embarca na polêmica de Kanye West em 2022, em seu ataque à editora negra americana da revista Vogue dizendo: “Esta é uma editora da Vogue? Olha isto?” Projetando a imagem de Gabriella Karev, que é uma mulher negra, retinta, cabelo curto, gorda e com estilo vintage. E logo finaliza: “Se eu falar mais posso ser processada por aquilo, né, que vcs sabem… Por que afinal tudo se tornou racismo.”
Volto para a minha realidade e subjetividade e penso por que estes posts me pararam e fizeram refletir profundamente. Eu sou uma mulher preta, nascida na década de 70, que acreditei que para fugir ao racismo eu deveria estudar. Abraçar a meritocracia, pois, afinal, se eu estudasse eu conseguiria. Eu ouvi isto de minha mãe, quem eu mais que amo. “Estuda!! Isto nunca vão te tirar.” Minha mãe acreditava na meritocracia.
Aos 11 anos de idade, comecei um projeto – que já citei em outra coluna – de ler 1000 livros. E comecei a devorar Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Dostoievski, Virginia Wolf, Oscar Wilde, Anais Nin, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Alex Huxley independentemente da idade. É claro que cheguei aos 16 anos com uma carga de conteúdo muito avançada para a minha idade e até maturidade. Mas meu projeto era claro: eu queria estudar o máximo que desse, pois aí eu conseguiria. Conseguiria o que? Sair da pobreza material, da escassez, do preconceito.
Com 17 anos, eu, aluna de escola pública em uma época sem cotas, ia pouco a festas (sim, isto existiu na minha vida kkk) e entrei em uma compulsão de compensação do que faltava: um cursinho de renome, viagens a Disney e ao exterior para intercâmbio de high school. Lembro que uma vez fiquei parada com um prospecto para high school no Canadá, pensei até no Alaska por ser mais barato. Mas ainda assim, filha de mãe solo que batalhava pelas condições essenciais do mês, um intercâmbio no exterior era um privilégio muito distante. Não tínhamos acesso a comunidades como Rotary ou outras que acabam sendo um privilégio de mobilidade social para algumas pessoas sem dinheiro. Era apenas nós: minha mãe e meus irmãos e deus… contra um mundo cheio de nãos e de conselhos: “Poxa, Wanda, tu trabalhas tanto para estas crianças estudarem… põe para trabalhar. Estudar é para quem pode.”
E, mesmo assim, minha mãe preferia que comêssemos polenta um mês e fôssemos para escola seguir nossos estudos. E dizia: quando vocês se formarem poderão comer o que quiserem, fazer o que quiserem, irem aonde quiserem. A gente acreditava nesta meritocracia como única saída viável. Um custo altíssimo de entrega que eu não via nas pessoas ao meu redor. E, quanto mais eu estudava, mais eu chegava perto de muitas respostas.
Chego no vestibular e me lembro de não ter lembranças do último semestre do ano. Eu me retirei do mundo, pois eu tinha apenas um objetivo: passar no vestibular da UFRGS. Me lembro bem da fala da minha mãe: “Ou tu passas na UFRGS ou ano que vem tu para de estudar. Porque não tenho dinheiro para a PUCRS”.
Eu estudei porque era minha única saída. Uma universidade federal. Gabaritei Francês, Português, Literatura, História que aprendi no colégio. Fui acima da média em exatas (nunca foi meu chão). Das 30 vagas, uma foi minha. Além de estudar, eu fazia mantras diários: de 30 vagas, uma é minha. Minha chance, meu acesso, meu passaporte para o respeito e dignidade.
Entrei na UFRGS, universidade pública, gratuita e encontrei colegas de um mundo que eu desconhecia: high schools, férias no exterior, filhos de médicos, advogados renomados, de escolas como Anchieta, Farroupilha… Eu descobri que eu tinha furado o sistema com o meu desespero de estudar acima de qualquer na vida.
A partir daí, vivo uma vida onde as pessoas expressam surpresa… pois eu descobri que na prática este “estuda que você consegue” é uma forma de iludir quem não tem ou teve uma mãe como a minha, que abdicou da própria vida para investir em três filhos. Abraçamos a meritocracia iludidos e descobrimos que ela não dá conta da promoção que não vem, do projeto que escolhem os filhos dos bem-nascidos (que muitas vezes tem muito menos estudo no popular). Ou da crítica, como a que sofre a Gabriella ao assumir uma posição de protagonismo na indústria da moda.
A fala de Conceição Evaristo é a ponta do iceberg chamado privilégio branco.
E lembram do tal intercâmbio que eu levei o prospecto para casa aos 17 anos?
Vai se realizar para comemorar os meus 52 anos.
Foi necessário + de 35 anos parra conseguir o que eu queria na adolescência. Mais um furo no sistema.
Meritocracia é uma falácia. É uma parte do racismo ativo parra justificar a exclusão.