Numa tarde ensolarada do outono gaúcho, aconteceu uma conversa querida com os primos Fernando e Bárbara Neubarth. Nós falamos de muitas histórias de família que nos fizeram viajar reféns de boas lembranças e, como em toda a boa tarde de colóquio familiar, se falou também de comida. Ali recebi o convite para voltar a escrever sobre o tema da opção de alimentação vegetariana. Eu já havia feito uma extensa pesquisa motivada tanto pela minha caminhada nessa escolha, como pela trajetória da filha do meio no veganismo. E convenhamos que tudo o que se trata de filhos a gente esmiúça, porque amor de mãe vai bem além de colo, já que a gente se sente responsável, inclusive, pelo fato de ter sido suficientemente capaz e eficaz na construção da ética, valores e preocupações que os filhos cultivam com a própria vida e suas escolhas.
Naquela tarde, talvez pelo impacto da surpresa e da lisonja do convite, eu nada respondi. Acontece que existe uma certa praga para aqueles que gostam de escrever. Com certeza terão aqueles que irão me entender, porque depois de um convite desses, aquela ‘cutucada’ inquieta não deixa o teu ombro ficar em paz. Assim, aqui estou.
Ao falar de opções de vida, sempre me faz lembrar do personagem do italiano Carlo Collodi, o Grilo Falante, criado para o livro infantil que publicou em 1883. Muito mais do que o Pinóquio, o meu olhar de criança se detinha naquele companheiro grilo cheio de sabedoria. Por certo, eu não entendia muito na época a tal intuição que abordava o companheiro de Pinóquio, mas me fascinava com ele. Para aquela menina, hoje uma senhora de vasta idade, a realidade não mudou. Continuo a buscar os ensinamentos do grilo e ouvir a voz interior, confiar nas próprias percepções, naquele sexto sentido que fica apontando algo que nem sempre se enxerga, mas está ali ou acolá. Sensações que reforçam o apotegma, ‘escuta teu coração’.
A realidade é que o ‘grilo’ me acompanhou pela vida e procurei repassá-lo para os filhos com o constante ‘escuta e segue teu coração para todas as tuas escolhas, seja para um atravessar de rua ou dirigir tua saúde na escolha de um alimento’. Tal escolha leva à questão de o que é ser onívoro, vegetariano, vegano? Por que escutar o coração para isso? É claro que para o nosso corpo tanto importa se os aminoácidos essenciais que ele precisa vêm de um pedaço de carne ou da união do feijão com o arroz. E eis aqui a questão de consciência, de cultura, de hábitos que vão abrigar e dirigir de onde ou de ‘quem’ virão os nutrientes que o corpo precisa para sobreviver. É perceber e entender que o teu sobreviver depende do sobreviver de outrem? São escolhas, com certeza. E, opções conscientes implicam análises, estudos dedicados, consciência, ética, sobrevivência. Então, o que pressupõe ser vegetariano?
Vou discorrer sobre o que estudei. Os significados a respeito do que é ser vegetariano quanto à sua opção de alimentação foram (e são) estruturados nas interações sociais e da saúde e têm provocado de forma crescente as análises de estudiosos(as). Na área da nutrição, recebe destaque no que se refere à adequação dessa alimentação sem a proteína animal. Nesse sentido, encontram-se discussões que permeiam os motivos éticos, ou os relacionados ao meio ambiente, ou quanto à busca de uma alimentação mais saudável e o desperdício. No fundo, é problematizar o conjunto dessas especificidades com aspecto social e da saúde junto aos muitos questionamentos sobre se essa dieta supre especificamente teores nutritivos somente com os vegetais. Visto que a maior discussão se baseia justamente na alimentação onívora, onde a proteína animal é comumente ressaltada em importância alimentar e com quantidades ditas adequadas de sua ingestão para ser um indivíduo saudável. Não é possível olhar somente para a conjuntura atual. É preciso pensar num ‘início’ com breve apanhado do que percebemos historicamente sobre o consumo de proteína animal.
Há evidências arqueológicas de que o homem consome carne desde a pré-história. Isso fortificou as hipóteses científicas de que comer carne é o que ajudou a desenvolver o corpo e o cérebro para a visão atual do ser humano. Tal ideia cresce com o tempo, já que, nos últimos 50 a 60 anos, a produção global de carne foi quadruplicada. Dados da FAO destacam a geração de cerca de 350 milhões de toneladas anuais, com previsão de que 455 milhões de toneladas de carne serão produzidas em 2050. Contudo, o entendimento da importância do consumo de carne começa a se modificar com novos estudos de achados paleontológicos, em análises destacadas por Briana Pobiner. Para a pesquisadora, há evidências de que os cérebros começaram a ficar maiores a partir da época em que os humanos iniciavam o processo de cozinhar seus alimentos, provocando um momento evolutivo através do consumo da variedade de produtos comestíveis, e não, de um único tipo particular como a carne. Essas análises provocam uma reviravolta quanto ao tipo de alimentação que impulsionou a evolução do homem sobre os aspectos cognitivos e de aprendizagem. Abre assim, o leque de argumentos para a dieta vegetariana e a obtenção de nutrientes e proteínas suficientes para a saúde do homem sem o consumo da proteína animal.
Mas, além dos pensamentos e análises sobre os aspectos de ingestão de alimentos, é importante entender como a pessoa vegetariana se posiciona no contexto social, isso porque pode-se perceber também o vegetariano como um ser cultural de ideias e posicionamentos, por conta de delineamentos, direções e condutas. Ou seja, entende-se, de alguma maneira, que o indivíduo vegetariano se entrelaça com práticas para a fabricação de determinadas subjetividades e identidades ao seguir uma alimentação diferenciada sem a proteína animal. Subjetividades na medida em que se dirigem para a formação de um grupo particular de pessoas: que se transformaram naqueles cujo princípio é não comer alimentos que impliquem na morte de animais. Doneda et al escreveu em 2020 que o vegetariano é visto como uma identidade construída. Identidade que indica como esse indivíduo deseja ser visto pelo outro e que foi sendo formada historicamente. Leonardo da Vinci, da Era Renascentista, já reconhecido por ser vegetariano, ressaltou em alguns escritos essa opção alimentar. Profetizava o tempo em que “os seres humanos se contentarão com uma alimentação vegetariana e julgarão a matança de um animal inocente da mesma forma como hoje se julga o assassino de um homem”, ou seja, vem de muito tempo esse modo em que algumas pessoas se colocam no mundo.
Penso aqui que se faz importante falar da relação entre subjetividade e identidade, pois identidade e subjetividade não são a mesma coisa, mas estão articuladas de modo indissociável. Conforme Kathryn Woodward, apesar de haver uma utilização intercambiável entre os dois conceitos, o que existe entre eles é uma sobreposição. Para a autora, a subjetividade sugere a compreensão que temos sobre o nosso eu. Para ela, é um termo que envolve os pensamentos e as emoções conscientes e inconscientes sobre o que nós somos. Assim, a subjetividade envolve nossos sentimentos e pensamentos pessoais, muito próprios de cada ser consciente. Ela ainda nos diz que vivemos nossa subjetividade em um contexto social onde a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual nós adotamos uma identidade. Assim, ao perceber tal reflexão, é possível entender que quaisquer conjuntos de significados construídos pelos discursos só são eficazes se eles nos recrutam como sujeitos, mobilizando-nos para que nos posicionemos de alguma maneira.
Essas posições assumidas e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades, no caso desse texto, como sujeitos vegetarianos. Um indivíduo vegetariano envolvido nas ideias e condutas desse conjunto de hábitos que envolvem alimentação, proteção animal e meio ambiente. Assim, é preciso entender um pouco mais sobre esse movimento ou estilo de vida alimentar diferenciado, que tem a primeira Sociedade Vegetariana fundada na Inglaterra em 1847, a primeira Sociedade Internacional Vegetariana em 1908, e a primeira Sociedade Vegana em 1944. Ou seja, é um posicionamento que se forma na condução da sociedade. Em breve contexto, alguns historiadores, como Natascha Stefania Carvalho de Ostos, ressaltam que a referência vegetariana remonta ao século VI A.C. com a prática por grupos religiosos. Mas foi com Pitágoras que o vegetarianismo com foco ético passa a influenciar seguidores em linha que ascendeu até os dias de hoje. A Sociedade Vegetariana Brasileira classifica também alguns tipos de vegetarianos, que incluem os ovolactovegetarianos (consomem ovos, leite e laticínios), os lactovegetarianos (consomem leite e laticínios), os ovovegetarianos (consomem ovos), os vegetarianos estritos (não consomem produtos de origem animal) e os veganos (que representam um movimento que não utiliza nenhum produto ou insumo animal e nenhum que seja testado em animais).
Com tais ideias, é possível concretizar a pessoa vegetariana numa compreensão de subjetividade ressaltada por Kathryn Woodward. Com isso, nos valemos de um estudo que coloca em evidência a ação da mídia como meio para constituir/reforçar a associação do vegetarianismo com o aumento da adesão das pessoas para esse tipo de alimentação. A pesquisa, que foi realizada pela Escola de Comunicação, Arte e Design da PUC-RS, Famecos, publicada em 2020, teve a análise da pesquisa com mais de 250 jovens, com idade entre 18 e 24 anos. Tal trabalho atenta para o caráter construtivo de um modo de ser e viver das pessoas analisadas através do fácil acesso a informações, imagens, mídias sociais, sites e canais do Youtube. Ou seja, construção e manutenção de estereótipos como um meio (ação) e um ser de princípios positivos (emoção), e o que isso implicaria para a vida. No estudo, os pesquisadores destacaram a perspectiva comprovante das imagens, edificando e reforçando a aproximação da dieta vegetariana com a causa ética, ambiental e de saúde. E é a partir do exemplo do estudo da Famecos que se tem a possibilidade de perceber o vegetarianismo repleto de representações, significados e identidades para as pessoas participantes de um processo de subjetivação marcado pelo preestabelecimento dos espaços de cada um na sociedade. Então, ao propor uma perspectiva que relaciona o vegetarianismo como um meio de vida, saúde e dieta, a intenção deste escrito não é esgotar o assunto, mas também, analisar como uma alimentação sem abate animal pode ser qualitativamente benéfica para as pessoas e com todos os nutrientes necessários para manter a saúde. Uma opção, uma escolha, um ouvir o coração.
O médico Eric Slywitch, doutor em Nutrição, ressalta inúmeros benefícios do ser humano vegetariano comparado ao onívoro, ao descrever achados de estudos com redução de mortes por infarto, índices mais baixos de colesterol, pressão arterial, diabetes, redução de desenvolver doenças como a diverticulite, pedras na vesícula, obesidade e câncer de intestino ou próstata. Ele aponta dois pontos importantes na opção da alimentação vegetariana. Em primeiro lugar, ao analisar estudos científicos, percebeu um modelo de alimentação melhor nos vegetarianos, na medida em que a qualidade se dá pela ingestão de cardápios, em sua maioria, que contém grande quantidade de produtos naturais e integrais. No segundo aspecto, destaca-se o impacto da presença de alimentos da dieta onívora, como a carne. Para exemplificar, o médico traz à tona a referência do Guia alimentar para a população brasileira que contempla porções. Segundo ele, ao considerar somente uma porção de 100g de carne e três laticínios, vemos que 25% do valor calórico total da dieta vem desses dois grupos alimentícios. Se o indivíduo trocá-los por alimentos de origem vegetal, ele já aumenta em 25%, pelo menos, a ingestão de fitoquímicos, que são, segundo ele, os meios vegetais que defendem o organismo contra doenças crônicas que não são transmissíveis.
Vamos concordar que o conceito básico de uma alimentação saudável é aquele que supre todos os nutrientes necessários para manter o corpo em funcionamento pleno. Então, pelo que já se percebeu, uma dieta vegetariana bem planejada deve promover o completo equilíbrio e as necessidades do corpo de um indivíduo. E, ao ressaltar as análises de Slywitch sobre os benefícios do vegetarianismo na prevenção de alguns males, é capaz de pensar o quão impactante positivamente essa dieta pode ser, na medida em que essas sejam planejadas a fim de manter e promover a saúde.
Mas, é preciso ter consciência de que nem todos os aspectos são positivos, como o doutor Eric bem ressalta, já que, mesmo bem planejada, a dieta vegetariana apresenta relatos de deficiência da vitamina B12. Nessa mesma linha, ele destaca que, apesar de os estudos com vegetarianos mostrarem níveis de B12 mais baixos, assim como o ferro, a B12 depende muito mais do metabolismo para ser processada do que da dieta ingerida, já que pesquisas brasileiras mostram que aproximadamente 12% da população que come carne apresenta deficiência da vitamina B12.
Para esclarecimento, a cobalamina ou vitamina B12 é uma vitamina produzida por bactérias, é hidrossolúvel e contém um átomo de cobalto que apresenta cor rosa (razão pela qual, quando manipulada, aparece na cor rosa escuro). Os vegetais não produzem nem necessitam dela. Esse nutriente é essencial para manter o sistema nervoso e as células sanguíneas de todos os animais. Para os seres humanos, a ingestão de B12 ocorre a partir da ingestão de carne animal, laticínios e ovos. É por esse motivo que, para os vegetarianos estritos, a ingestão de B12 por intermédio exclusivo da alimentação tende a ser praticamente nula (se ocorrer, será em quantidades irrisórias produzidas por bactérias presentes nas plantas). Os estudos apontam que, por ser uma vitamina essencial que desempenha papel importante no metabolismo e não é sintetizada pelo organismo, o teor da B12 deve apresentar, no mínimo, 1 mcg por dia, para assegurar a saúde.
Já na questão do ferro, o doutor Eric nos demonstra que, ao retirar a proteína animal da alimentação, não há promoção de impacto negativo na quantidade total do ferro ingerido do alimento. O médico nutricionista destaca estudos científicos em que a ingestão de ferro pelos vegetarianos costuma ser maior do que a das pessoas que têm uma alimentação onívora.
Dizendo o mesmo para a vitamina C, substância que auxilia na absorção do ferro pelo organismo. Num exemplo, Slywitch apresenta uma conta simples comparativa da absorção de ferro pelo consumo de carne e de uma concha de feijão: em 100g de carne, com 2 mg de ferro, é absorvido 18% desse ferro, ou seja, 0,36mg; em uma concha de feijão, a média é de 4,2 mg de ferro, que é absorvido 10%, ou seja, 0,42mg. No exemplo, se destaca que 1 concha de feijão consegue oferecer mais ferro absorvível que a carne com as mesmas 190 kcal. Assim, o alimento dos vegetarianos não é deficiente em ferro, ressalta o médico e nutricionista, a diferença é que o ferro de origem vegetal é mais sensível aos fatores que promovem ou inibem sua absorção. Portanto, vale ressaltar que se deve ficar atento quanto aos alimentos que compõem a dieta, já que alguns favorecem a absorção do ferro e outros não. A vitamina C, por exemplo, junto aos alimentos que contêm essa vitamina em maior proporção, é o composto que mais beneficia a absorção do ferro. Já, o que pode prejudicar a absorção são os alimentos que possuem a presença dos polifenóis ou ácido fítico.
Vais seguir teu coração?
Denise Preussler dos Santos é jornalista (Unisinos), com mais de 180 artigos publicados em jornais do Interior. Tem publicações na Revista Teias, Labrys, Revistas Eletrônicas Puc, Revista de Educação, Linguagem e Literatura-UEG Inhumas. É Mestra em Educação (Ulbra) e Terapeuta Integrativa. Atualmente cursa Nutrição (Uniasselvi).
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Foto da capa: Freepik