Em 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU) deu início à Primeira Década Internacional para Afrodescendentes, sob o tema “Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento”. Essa iniciativa justifica-se pela urgência de combater as desigualdades enfrentadas por afrodescendentes em todo o mundo. Em dezembro de 2024, a Assembleia Geral da ONU proclamou a Segunda Década Internacional de Afrodescendentes, com início em 1º de janeiro de 2025 e término em 31 de dezembro de 2034 que, ao mesmo tempo em que considera as conquistas da Primeira Década (2015-2024), reconhece a premente necessidade de continuidade das ações, diante do cenário global de intensificação do racismo estrutural e avanço de discursos fascistas que tentam restaurar ideologias de superioridade branca.
Lições e Resultados da Primeira Década
A Primeira Década Internacional para Afrodescendentes trouxe avanços significativos, como o fortalecimento de legislações antirracistas e a implementação de programas de ação afirmativa, incluindo cotas para acesso à educação superior e ao mercado de trabalho. No Brasil, país que mais avançou nesse sentido no período, por exemplo, a Lei de Cotas nas universidades foi um marco que ampliou as oportunidades para a população negra, impulsionando o aumento do número de profissionais negros em áreas anteriormente inalcançáveis.
E os principais avanços observados, no que tange à política de cotas no Brasil, foram:
- Maior taxa de permanência e de conclusão do curso entre cotistas do que as taxas de estudantes da ampla concorrência (Governo Federal – MEC 2024);
- Desempenho acadêmico de estudantes que ingressaram pelas cotas igual ou superior ao dos estudantes que ingressaram pelo sistema de ampla concorrência. (Governo Federal – MEC 2024);
- Segundo o Censo da Educação Superior, 51% dos alunos cotistas da rede federal concluíram o curso, enquanto o índice entre os não cotistas foi de 41%. (Governo Federal – MEC 2024);
- O número de estudantes pretos e pardos, em 2019, foi pela primeira vez maior que o de pessoas brancas nas instituições de ensino superior da rede pública. (IBGE, 2022 – Censo);
- De acordo com dados do IBGE, o número de alunos negros no ensino superior cresceu quase 400% entre 2010 e 2019. O próprio Instituto confirmou que a elevação desse percentual ocorreu em função da Lei de Cotas.
Em que pesem os percentuais significativos para o propósito, restam desafios, como:
- O fato de negros avançarem nas graduações que mais formam executivos, mas ainda serem invisíveis para as empresas;
- Apesar de a política de cotas nas universidades públicas e de bolsas e crédito nas privadas, na última década, ter ampliado a presença de negros no ensino superior, o mesmo não ocorreu nos escritórios das empresas, onde ainda se concentram na base, em funções operacionais.
Essas são constatações de pesquisas que mostram a presença de negros já formados no mercado, mas o subaproveitamento dos mesmos.
Outro avanço observado no período da Primeira Década Internacional foi a efetivação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), que articula políticas públicas de combate ao racismo e promoção da equidade racial.
O SINAPIR foi instituído pela Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial) e regulamentado pelo decreto nº 8.136/2013 para atuar na organização e articulação e implementação do conjunto de políticas e de serviços direcionados à superação do racismo em todo território nacional. Ao todo, são 187 municípios integrados ao SINAPIR. Desses, 135 afirmaram possuir órgãos de Igualdade Racial, sendo constituídos.
Para que não falemos somente de avanços no Brasil, internacionalmente, alguns países fortaleceram políticas de reparação histórica. Na Colômbia, a adoção de políticas de reconhecimento dos direitos das comunidades afrodescendentes destacou-se. Um bom exemplo é o Programa Quilombo das Américas que, em parceria com o Brasil, instituiu o projeto com o objetivo de criar um espaço de articulação e cooperação entre essas comunidades, promovendo o reconhecimento de seus direitos, a preservação de suas culturas e a justiça social e racial. A meta é construir uma rede de cooperação interinstitucional e impulsionar projetos de cooperação internacional, com foco no fortalecimento cultural, sustentabilidade ambiental e resistência comunitária.
O programa Quilombo das Américas está estruturado em cinco eixos principais:
1. Direitos Territoriais – Busca garantir a regularização dos territórios das comunidades afrorrurais, reconhecendo suas reivindicações históricas por acesso à terra e segurança territorial.
2. Conservação da Biodiversidade – Promove práticas de gestão ambiental sustentável nas áreas onde essas comunidades vivem, preservando a rica biodiversidade das regiões e mitigando os impactos das mudanças climáticas.
3. Identidades e Ancestralidades Afrodescendentes – Valoriza e preserva o patrimônio cultural afrorrural, com o reconhecimento das tradições e práticas ancestrais como fundamentais para a sustentabilidade e a preservação do meio ambiente.
4. Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs) – Apoia a produção agrícola dessas comunidades, incentivando a preservação de tecnologias tradicionais que garantem a sustentabilidade alimentar e a segurança climática.
5. Políticas de Cuidado e Estratégias contra Violências – Implementa e fortalece políticas públicas que protejam essas comunidades da violência social, racial e ambiental, com especial atenção às mulheres e crianças.
Ações como essas evidenciam como a pauta afrodescendente transcende fronteiras, exigindo colaborações globais.
Ao longo do período da Primeira Década, mais de 30 países mudaram suas leis e políticas para combater a discriminação racial; e iniciativas das Nações Unidas capacitaram jovens líderes afrodescendentes, celebraram a herança e cultura afrodescendentes e, em 2021, levaram à criação do Fórum Permanente de Afrodescendentes.
Entretanto, esses avanços não foram suficientes para eliminar as desigualdades raciais. O racismo estrutural persiste, evidenciado por indicadores sociais alarmantes:
- No Brasil, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública;
- Registros de casos de racismo aumentaram 127% no país em 2023; e o RS lidera o ranking (Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024);
- Seis em cada dez negros sofreram discriminação no último ano, conforme a Agência Brasil em 05/11/2024;
- Negros são 75% entre os mais pobres; brancos, 70% entre os mais ricos;
- Entre os 10% com maior rendimento per capita, brancos são 70,6% enquanto os negros são 27,7%;
- Já entre os 10% mais pobres, a situação se inverte: 75,2% são negros, e 23,7%, brancos.
Além disso, uma pesquisa do Instituto Ethos revelou que, em 2017, a expectativa para alcançar igualdade racial no mundo corporativo era de 150 anos, aumentando para 167 anos em 2021. Esses desafios reiteram o entendimento de que o comprometimento coletivo é essencial para consolidar os ganhos na luta por equidade racial.
Os Desafios da Segunda Década
Reconhecimento, justiça e desenvolvimento, pilares desta Segunda Década, exigem ações mais robustas e abrangentes. Em um contexto de recrudescimento do racismo e da intolerância, é crucial intensificar os esforços em diversas frentes:
- Educação Antirracista e Letramento Racial: A educação é um elemento transformador. Introduzir o letramento racial nas escolas e organizações pode ampliar a consciência sobre as dinâmicas do racismo estrutural e incentivar a ação coletiva. A formação de agentes multiplicadores é um caminho eficaz para promover a sensibilização.
- Ampliação da Representatividade em Espaços de Poder: A sub-representação de negros em cargos de liderança é um reflexo das barreiras históricas e culturais. Estratégias como mentoria de lideranças negras, programas de desenvolvimento e metas corporativas de diversidade são essenciais para mudar esse quadro.
- Fortalecimento de Comunidades Tradicionais e Combate à Intolerância Religiosa: Quilombolas e comunidades tradicionais continuam enfrentando ameaças aos seus territórios e direitos. É necessário promover a defesa dessas comunidades, bem como enfrentar a intolerância contra religiões de matriz africana, assegurando sua liberdade de expressão cultural e espiritual.
- Combate à Apropriação Cultural: É fundamental conscientizar a sociedade sobre o impacto negativo da apropriação cultural e fomentar a valorização genuína das culturas afrodescendentes.
- Promoção de Programas de Equidade: As organizações têm um papel fundamental na promoção da igualdade racial. Programas estruturados de ação afirmativa e compromissos públicos com metas de diversidade são ferramentas para enfrentar as desigualdades dentro das instituições.
O Papel do Brasil na Segunda Década
O Brasil, com uma das maiores populações afrodescendentes do mundo, tem assumido protagonismo em ações de promoção da igualdade racial.
O país tem a segunda maior população negra do mundo, aproximadamente 110 milhões, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019 – PNAD. Em números absolutos, perde apenas para a Nigéria, que tem uma população negra de 190 milhões.
O lançamento de um novo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS 18), o qual abordei durante o Mês da Consciência Negra, nesta Coluna Odabá, na Sler, focado na equidade racial, demonstra o compromisso do país em colocar o tema na agenda internacional. Além disso, a criação do Ministério da Igualdade Racial fortalece as políticas públicas voltadas à população negra, garantindo maior estrutura e alcance dessas iniciativas.
A implementação de programas como o SINAPIR e a ampliação de políticas de cotas em diversas esferas do setor público e privado são exemplos de ações que, apesar dos desafios, têm gerado impactos significativos. Contudo, o cenário ainda enfrenta contratempos, como o aumento de células neonazistas no país, especialmente na região Sul, o que evidencia a necessidade de maior vigilância e combate ao extremismo racial.
O Cenário Global de Retrocessos
Vivemos em um período em que o avanço de governos autoritários tem promovido retrocessos nas políticas de inclusão e diversidade. A administração de Donald Trump, por exemplo, já nos primeiros dias do novo governo, desmontou programas voltados à equidade e reuniu bilionários para reforçar desigualdades. Em paralelo, plataformas como as de Mark Zuckerberg foram acusadas de tolerar expressões racistas, enquanto o bilionário Elon Musk gerou polêmica ao fazer gestos considerados nazistas em discursos públicos. Esse contexto global reflete uma crescente tentativa de restabelecer narrativas de superioridade branca, alimentando movimentos neonazistas e fortalecendo discursos de ódio.
O Papel da Sociedade Civil e das Organizações Afroempreendedoras
A continuidade e intensificação das ações dependem do engajamento da sociedade civil. Organizações como a Odabá e coletivos negros desempenham um papel crucial na construção de redes de suporte e na implementação de iniciativas de impacto. O fortalecimento do afroempreendedorismo e de projetos que incentivem o protagonismo negro também são ferramentas fundamentais na luta por igualdade.
Além disso, é imprescindível que a sociedade branca assuma o compromisso com a pauta racial, compreendendo que a luta antirracista não é apenas uma causa dos negros, mas uma responsabilidade coletiva para construir um mundo mais justo.
O racismo não é apenas uma mazela social à parte. É, também, um problema econômico que causa severas distorções sociais que originam desigualdades de emprego e renda no país. É a partir da estrutura do racismo que se perpetuam as desigualdades observadas desde os períodos coloniais ao longo da própria história de formação e organização do Brasil. O mesmo ocorre em outros países que convivem com as chagas das heranças da colonização. Assim, a Segunda Década Internacional para Afrodescendentes, em nível global, é uma oportunidade única da ONU e dos países membros aprofundarem o compromisso com a equidade racial, colocando-a no centro de suas prioridades, como um compromisso global antirracista institucional.
Reconhecer as conquistas é importante, mas há uma longa jornada pela frente. Apenas com ações integradas e o engajamento real de todos poderemos enfrentar os desafios do racismo estrutural e construir uma sociedade verdadeiramente inclusiva. Que este seja um período de avanços concretos e transformações duradouras.
E para você, qual é o seu compromisso antirracista para os próximos anos?
Fontes:
Negros avançam nas graduações que mais formam executivos, mas ainda são invisíveis para as empresas – Emprego – Extra Online
Seis em cada dez negros sofreram discriminação no último ano | Agência Brasil
Década Internacional de Afrodescendentes
ONU lança Segunda Década Internacional para Afrodescendentes | As Nações Unidas no Brasil
Censo 2022 – Base dos Dados
Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil | Educa | Jovens – IBGE.
A produção ativa da invisibilidade dos crimes de ódio através de dados que (não) informam
Anuário de Segurança Pública aponta aumento de 127% nos casos de racismo registrados em 2023 | Jovem Pan.
A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil, diz CPI – BBC News Brasil
Registros de casos de racismo aumentaram 127% no Brasil em 2023; injúria racial também cresce
Seis em cada dez negros sofreram discriminação no último ano | Agência Brasil
Negros são 75% entre os mais pobres; brancos, 70% entre os mais ricos.
Entre os 10% com maior rendimento per capita, brancos são 70,6% enquanto os negros são 27,7%; já entre os 10% mais pobres, a situação se inverte: 75,2% são negros, e 23,7%, brancos.
Juliano Guedes é fundador e diretor da JG Consultoria, Treinamento e Soluções para Promoção da Igualdade Racial, e membro da Odabá Associação de Afroempreendedorismo. @juliano_guedesjg
Foto da Capa: Freepik
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