Não que vocês aí, meus sete ou oito leitores, tenham perguntado, mas essa parte é meio que importante para o entendimento do resto do texto, então deixem-me partilhar uma reminiscência pessoal: este seu articulista foi, durante três anos, setorista de polícia no maior jornal da província. A experiência foi, como qualquer repórter que tenha atuado no início de sua carreira nesse campo pode confirmar, de impacto duradouro na minha formação. Tanto nos meandros de como cultivar uma fonte, obter informações por métodos oficiais ou extraoficiais, vale muito aquela frase-feita que definia a reportagem policial como uma “escola” para a profissão. E é verdade, uma vez que numa escola você aprende tanto o que ela quer te ensinar como as coisas que seria melhor não saber.
A reportagem policial, praticada por muito tempo, oferece riscos não pequenos à alma do jornalista que por ela se envereda. Um deles, reconhecido por quase todo mundo, é a possível gradual dessensibilização do repórter diante do que é o acompanhamento diário das formas mais comuns às mais criativas com que pessoas podem provocar danos aos outros, a si mesmo, às suas propriedades e às alheias, ao entorno de modo geral. Todo repórter policial tem consciência de que algo pode estar se perdendo nele quando a terceira matéria em um ano sobre cabeças decapitadas e jogadas no meio da rua já não provoca mais o mesmo abalo e a mesma perplexidade da primeira.
Outro risco é mais difuso e largamente ignorado, quando não efetivamente negado pelo jornalismo policial diário: o caráter viciado da cobertura episódica que a imprensa policial costuma fazer do crime como fenômeno – longe já vão os tempos em que a reportagem policial “clássica” da imprensa brasileira, aquela imortalizada por Nelson Rodrigues em algumas de suas peças, como O Beijo no Asfalto, por exemplo, chamava qualquer crime de “tresloucado gesto”. Mas, na prática, sem usar a expressão, o que a maior parte do trabalho de cobertura da reportagem policial contemporânea ainda é focado nas motivações pessoais de “tresloucados gestos”, em casos de crimes especialmente rumorosos, ou num certo entendimento monolítico dos atores em disputa, no caso dos tentáculos cada vez mais amplos do crime organizado. Não ajuda muito o fato de que a maioria dos repórteres de polícia só consegue obter informações diretamente das forças de segurança, e assim o ponto de vista da polícia é geralmente favorecido não apenas na cobertura, mas no próprio cotidiano da redação.
Subjetividade
Ao mesmo tempo, o noticiário policial, bem como seu primo tão descontextualizado quanto, o noticiário esportivo, é um dos poucos campos de sucesso de público assegurado em qualquer veículo, online ou impresso. Como o jornalismo, na busca pela relevância perdida, também precisa ele apresentar um discurso que justifique sua existência para além da mera e muitas vezes simples necessidade de audiência, esse interesse público do tema é muitas vezes envelopado no entendimento, nada equivocado aliás, de que segurança é um tema sério – a esquerda muitas vezes falha em entender o QUÃO sério ele é, abrindo o flanco para o surgimento dos políticos reaças que vendem, em vez de teses sociológicas acadêmicas, soluções simplistas e muitas vezes fraudulentas, mas que podem ser entendidas pela população acossada pela criminalidade urbana (aliás, aqui CABERIA o uso da expressão “construção de narrativa” mas eu vou me abster de usá-la porque termos como esses foram meio que conspurcados depois que caíram no uso corrente das hostes bolsonaristas – como, aliás, praticamente tudo o que caiu na mão do bolsonarismo foi degradado a um ponto em que a recuperação se torna até mesmo duvidosa, do diálogo político às instituições democráticas, com espaço também para o rolls-royce da presidência).
Mais do que meramente contar “histórias” de interesse, ou tentar “apontar soluções”, algo que o jornalismo gosta bastante de se imaginar fazendo, o que muitas vezes ele providencia é um discurso, uma percepção pública, a construção de “padrões de subjetividade”, para usar a expressão de Perseu Abramo, sobre “o estado da segurança na comunidade”. Só que, e aqui chegamos ao fundamento deste texto, “o estado da segurança” é uma escala de medida social que, assim como a temperatura na meteorologia, pode resultar em dados e percepções enganosas de acordo com o ponto de vista do observador e o contexto da observação.
A maneira como um indivíduo percebe a segurança de sua comunidade tem muito a ver com seu próprio perfil. Pessoas idosas e mulheres, vistas por muitos (e às vezes por si mesmas) como fisicamente mais vulneráveis, tendem a se sentir mais inseguras no centro de grandes cidades, seja em grandes aglomerações seja em passagens desertas.
Perspectivas
Crimes chocantes e mudanças rápidas nos índices de criminalidade também criam no cidadão um sentimento de que ele não está mais seguro em sua cidade. Este é um elemento que tem contribuição direta do modo como a grande imprensa trabalha o noticiário policial – um modo que não é nunca isento de viés. Basta comparar que tipo de cobertura você acha que terá mais destaque na imprensa: a execução de um morador numa zona de tráfico ou a morte inesperada de um motorista atingido por bala perdida numa região menos precária. Normalmente, é neste ponto que as plataformas políticas de candidatos de campanha, principalmente os mais conservadores, se apegam para suas críticas ou promessas.
As pessoas tendem a se sentir mais inseguras quanto mais longe estão de sua própria vizinhança. Mesmo quem mora em áreas com índices altos de criminalidade sente-se mais seguro em sua comunidade de origem do que em outras áreas semelhantes ou no centro de grandes cidades. Mesmo assim, a percepção de que a sua própria vizinhança é segura ou insegura varia de acordo com os índices sociais reais do lugar, mas também muda de acordo com fatores relativos. Um morador de comunidade dominada pelo tráfico, embora viva em uma zona violenta, corre menos risco lá do que um estranho que aparece sem dar justificativas para “os donos do lugar”. O morador de uma área “nobre” pode estar se borrando de medo porque viu um vizinho ser assaltado na frente de seu condomínio, mesmo que os índices naquele lugar sejam pífios em comparação a outras áreas menos privilegiadas.
Espaço urbano degradado, com prédios caindo aos pedaços, sem luz, calçamento irregular, praças e parques sem ajardinamento, ajuda a formar a ideia de uma área insegura mesmo que os índices não reflitam essa impressão. Isso é algo que qualquer morador de comunidades desassistidas pelo poder estado pode te falar com mais propriedade do que eu, mas como tem muita gente que não escuta o que eles falam, aqui estou eu pontuando esse tópico.
Via Ápia
Mais polícia nem sempre é sinal de mais segurança. Se a polícia for mobilizada para entrar em determinadas áreas apenas como paliativo repressor (o que acontece quase sempre que grandiosas “operações” são gestadas no ar-condicionado confortável do poder), sua presença será identificada com sinal de alerta. Se a polícia não estiver presente na rotina da comunidade de modo positivo, sua súbita aparição contribui ainda mais para a sensação de insegurança dos moradores locais. Claro, aí também entra uma questão de cinismo pragmático. Muitas vezes, tais operações são gestadas com o interesse único e específico de passar uma mensagem de tranquilidade para uma parte da população, a que não mora nos locais em que a operação é deflagrada. A polícia pode ser usada como agente do esculacho geral em morros e comunidades simplesmente porque isso tranquiliza a cabeça do branco classe média que recebe apenas a notícia de que “algo está sendo feito” para “retomar os territórios”.
As reflexões desta coluna surgiram depois que este seu colunista começou a ler o romance Via Ápia, do escritor carioca Geovani Martins. Martins é um autor nascido na favela da Rocinha que ganhou reconhecimento há uns bons três anos com um livro de contos no qual apresentava em suas histórias uma visão “de dentro” das relações de classe e poder no Rio de Janeiro. Usava como elemento formal de construção a linguagem e as gírias do morro, e, se do ponto de vista do uso da linguagem essa era uma opção interessante, nem sempre seus contos tinham a solidez que a propaganda precoce em torno de seu nome dava a entender.
Mas com esse romance, recentemente lançado, a história é bem outra. A narrativa acompanha cinco jovens moradores da Rocinha, os irmãos Wesley e Washington e três outros rapazes, Douglas, Murilo e Biel, que racham o aluguel de uma casa na Rocinha próxima à “Via Ápia” do título, a principal via de comércio e trânsito dentro da comunidade. Cada um deles é mostrado tendo que lidar com suas lutas e perrengues cotidianos. Nas horas vagas, cada um deles fuma seu baseado, azara algumas moças, frequenta os bailes e festas do morro e cultiva um desejo de ser algo mais. Washington largou um emprego sem carteira assinada de garçom numa casa de festas e agora precisa correr atrás de outra coisa. Seu irmão ainda trabalha no lugar, mas sonha juntar grana para se tornar mototaxista. Murilo está conscrito no exército, o que fratura sua identidade como alguém que pode, em breve, ser usado em operações em sua própria vizinhança, contra pessoas que conhece. Douglas quer ser tatuador, enquanto Biel, branco, trafica para tentar se aproximar da turma mais confortável da Zona Sul carioca.
Aliás, um dos elementos bem-vindos trazidos para o cenário por novos nomes da literatura brasileira como Jeferson Tenório, José Falero e o próprio Martins neste romance é um retorno, à literatura brasileira, da classe trabalhadora, personagens que não são apenas um substituto para o autor, trabalhando como escritor ou tradutor, fazendo mestrado e frequentando a boemia cultural alternativa, mas gente que sua, dá duro, tem problema pra conseguir grana, gente que está com os dois pés num mundo do trabalho relegado nas últimas três décadas a um plano secundário na ficção nacional).
UPPs
O centro estruturante da narrativa, em torno do qual gravitam os cinco e outros personagens colaterais, é a iminente instalação, na Rocinha, de uma UPP, Unidade de Polícia Pacificadora, programa vitrine do governo carioca para “retomar as áreas do Rio na mão do tráfico”, já com vistas ao marketing de um Rio mais seguro para os eventos da Copa e das Olimpíadas. E uma das coisas interessantes neste romance é como Martins decanta em ficção exatamente tudo o que eu comentei na primeira parte deste texto: segurança é questão de ponto de vista. Em um Rio em que o discurso da guerra ao tráfico às vezes é apenas inefetivo, às vezes é usado como cortina de fumaça para limpar a área para a expansão da milícia, para os moradores da “pista” (a forma como os personagens se referem ao que no romance mais antigo Cidade de Deus, de Paulo Lins, era chamado de “o asfalto”) uma ocupação como essa parece ser uma bem-vinda estabilização para uma comunidade “nas mãos do tráfico” – discurso que a própria imprensa comprou de modo entusiasmado e acrítico.
O livro de Martins muda o foco e mostra que, dentro da Rocinha, o cenário era outro. Pouco antes da invasão, vivia-se por lá uma paz negociada na qual o dono do morro Nem pagava o suborno da polícia e mantinha a ordem interna para tornar os bailes do lugar uma atração turística frequentada até mesmo pela classe alta carioca. Para a comunidade, isso significava não “a mão de ferro do tráfico”, mas uma certa normalidade em que negócios muitas vezes clandestinos iam abrindo novas oportunidades, do mototáxi ao “gatonet”, e em que a Via Ápia do título é mostrada como uma artéria vibrante em que as atividades (não apenas as da “boca”, mas do comércio local) avançam madrugada adentro. A chegada da UPP é marcada já no primeiro dia pelo silêncio e pelo comércio vazio, invasão de casas, dificuldade de transporte, e a “estabilização”, vista de dentro, tem mais a aparência do caos do que qualquer outra coisa.
É uma leitura que produz uma das coisas mais agradáveis da literatura como fenômeno criativo. Um bem-vindo deslocamento de perspectiva. Porque, assim como a temperatura de um termômetro pode não corresponder à “sensação térmica”, resultado da pressão de vários outros elementos atmosféricos geográficos e meteorológicos (inclusive a pressão ela própria), os indicadores do “termômetro social” não são definitivos ou sólidos por si mesmos, e a forma como um indivíduo percebe esse conjunto de dados tem tanta influência de seu ponto de vista quanto das estatísticas.