No ano de 1968, Mário Quintana (1906-1994) foi homenageado na sua terra natal, Alegrete, na região da Campanha, do Rio Grande do Sul. Antes, indagado por autoridades municipais sobre o que achava de ter um busto seu em praça pública, teria aberto um sorriso maroto e respondido que não poderia aceitá-la, arrematando a sua negativa com uma frase que se tornou conhecida por muita gente, “Um engano em bronze é um engano eterno”. Consta que a solução encontrada pelos seus conterrâneos foi eternizar em bronze, na praça central da cidade, a frase espirituosa que ouviram do poeta. Quintana não aceitou o busto por modéstia, mas sua frase provoca uma reflexão sobre o ato de homenagear as pessoas. Parece que nossas autoridades não aprendem. Constantemente vemos fartas distribuições de diplomas e medalhas, muitas das vezes, constrangedoras, para a comunidade, é claro.
Mário é aqui lembrado pela sua preocupação com a seriedade e com a verdade naquilo que é transmitido às futuras gerações. Na qualidade de professor, o articulista tem se dedicado na sua atuação docente, no campo da arquitetura e urbanismo a esclarecer termos ou expressões usados na língua portuguesa, relacionados com a área, erroneamente interpretados e disseminados, popularmente e no meio acadêmico. De onde vêm a palavra “azulejo”? e as expressões “feito nas coxas”? e “sem eira, nem beira”? Se um erro em bronze se eterniza, um erro escrito ou transmitido pela tradição oral, também.
Tratar deste assunto traz à mente, também, o quadro “A parábola dos cegos”, em neerlandês De parabel der blinden (1568), do pintor renascentista flamengo, Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569), tela do acervo do Museu Capodimonte, de Nápoles, na Itália.
Na obra, Bruegel retrata a parábola contada por Jesus Cristo, na qual um cego guia o outro (aparece na Bíblia, em Mateus 15:14), quando dirigiu-se criticamente aos Fariseus. Disse: “Deixai-os, são cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala”. No quadro citado, vê-se um cego caído, o segundo está caindo, e os outros quatro, estão prestes a cair. A metáfora foi usada para descrever uma situação na qual uma pessoa sem conhecimento é aconselhada por outra que também não tem conhecimento algum sobre determinado assunto. O erro é repetido.
Do Oiapoque ao Chuí, os guias turísticos são unânimes em afirmar a mesmíssima coisa, quando abordam detalhes do beiral e do telhado na arquitetura tradicional do período colonial e das primeiras décadas do período imperial (do século XVI até meados do XIX). O leitor não se assuste com os termos técnicos que aqui serão usados. A intenção é explicar, inclusive o que é um beiral. Lamentavelmente o que se ouve deles não condiz com a realidade, motivo pelo qual, é necessário esclarecer as pessoas. Importante lembrar que estes guias aprendem erroneamente nos cursos que os habilitam profissionalmente, reproduzindo a parábola dos cegos. Cada vez mais, por leis estaduais e municipais, são exigidas as participações destes profissionais em atividades turísticas, daí a importância de esclarecê-los também. Ao escrever este artigo, o autor encontrou surpreendentemente, na internet, no facebook de uma Secretaria Estadual de Educação, os mesmos erros. Quem tem obrigação de informar e educar, desinforma e deseduca. Em período recente, tivemos o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional equivocadamente colocado dentro de um Ministério de Turismo, com direção com pessoa da área. Adiantou, pelo menos para situações como esta?
Antes de continuar é preciso elucidar que, naquela época colonial e no início do Império, eram feitas e empregadas telhas de barro com curvatura em meia cana, chamadas de canal ou bica, com a cavidade voltada para cima, constituindo um canal para escoamento das águas pluviais. As telhas que se apoiam nos canais ou bicas, ficando com a cavidade voltada para baixo, chamam-se capas (CORONA & LEMOS, 1972, p. 445-446 ou MASCARELLO, 1982, p. 53). Daí a denominação de telhado com telhas capa e canal ou capa e bica (chamadas genericamente de telhas coloniais). As telhas que servem de capa, evitam infiltrações e despejam as águas para as telhas canais ou bicas, e estas, conduzem e escoam as águas do telhado. Inicialmente não existiam condutores pluviais. As águas eram lançadas do telhado, por gravidade, diretamente para o solo nas extremidades dos telhados.
É necessário explicar ao leitor que a parte do telhado que avança além do plano da parede, nas extremidades, é chamado de beira, beiral ou beirado. Para sustentar o peso das telhas que ficavam em balanço, eram necessárias pequenas vigas, chamadas de “cachorros”, ou avançar do plano da parede, paulatinamente, até aproximar-se da extremidade do beirado, com tijolos. Neste último caso, a argamassa permitia elaborar frisos horizontais com o uso de formas de madeira. O nome dado a este elemento em argamassa e tijolo é a “cimalha”. Esta maneira de elaborar, exigia uma certa sofisticação. Foram utilizadas no menor número de exemplares existentes. Em algumas edificações mais raras ainda, diga-se de passagem, usou-se cimalhas em cantaria, isto é, de pedras trabalhadas. Mas não são estes tipos de cimalhas que aqui interessa. Os ventos faziam com que, por vezes, pingos de águas das chuvas infiltrassem na parte superior da parede, abaixo dos beirais. Para sanear este problema, surgiu outro tipo de cimalha, mais em conta, a chamada “cimalha boca de telha”. É este tipo é o que interessa ao tratar do assunto aqui em pauta. “Cimalha boca de telha” é o nome dado “à cimalha executada com telhas engastadas na porção superior das paredes, muito comuns nas construções de pedra e cal das cidades da marinha” (CORONA & LEMOS, op. cit., p. 129). Foram, portanto, difundidas na região litorânea do Brasil, nos três primeiros séculos e meio de presença portuguesa. “Podemos dizer que é de ‘beira e bica’, quando as telhas externas da cobertura, que despejam as águas pluviais, as bicas, apoiam-se em uma ‘cimalha boca de telha’, isto é, apoiam-se em uma única fiada de telhas engastadas na alvenaria da parede” (MASCARELLO, op. cit., p. 50). Segue esta autora dizendo que “Quando as telhas se apoiam em cimalha boca de telha constituída de duas ou mais fiadas de telhas engastadas na alvenaria da parede o beiral recebe o nome de beiral de beira- seveira (corruptela de beira, sob beira, beira-sobeira, beira-seveira” (Idem, p. 51).
O que dizem os guias turísticos?
Seguem a explicação popular de que “quando as residências eram construídas com telhados de biqueiras. Nas casas dos mais afortunados, existia mais de uma biqueira (entenda-se aqui por cimalha boca de telha), chamadas de ‘eira e beira’ (beiral de beira-seveira). Por cima delas, havia ainda o telhado, chamado de tribeira. Mas algumas pessoas não tinham recursos para construir telhados com ‘eira e beira’, e daí surgiu a expressão ‘sem eira nem beira’. A falta dessas biqueiras indicava que ali morava uma pessoa sem posses e que tinha condições de colocar apenas o telhado como cobertura (citação buscada na internet, no site G1-Globo)
E os dicionários de língua portuguesa, o que dizem?
Diz o Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa que “eira”, é “substantivo feminino, 1. área de terra batida, lajeada, ou cimentada, onde se malham, trilham, secam e limpam cereais e legumes. 2. Terreno onde se junta o sal, ao lado das marinhas. 3. Pátio, em algumas fábricas de tecido. 4. Bras. Lugar anexo às fábricas de açúcar, onde se guardam as canas antes de serem utilizadas” (FERREIRA, 1988, p. 235).
Nos dicionários especializados em arquitetura e urbanismo, o significado de “eira”, vai ao encontro dos dicionários da língua portuguesa: “Nos estabelecimentos agrícolas, pátio ou terreiro onde são secados e manipulados os cereais ou legumes, logo após a colheita. Nos prédios industriais, principalmente tecelagens e usinas de açúcar, nome dos pátios onde são depositadas as matérias primas”. (CORONA & LEMOS, op. cit., p. 178).
Já a palavra “tribeira” não existe na língua portuguesa, muito menos nos dicionários específicos sobre arquitetura e urbanismo.
Pelo exposto, é falsa a explicação oferecida pelos guias de turismo brasileiros, que como foi dito anteriormente, são induzidos ao erro e transmitem aquilo que erroneamente aprendem.
A expressão “sem eira nem beira” aparece surpreendentemente em quase uma dezena de títulos e letras de canções dos mais diversos gêneros. Dentre elas, na música religiosa do Padre Zézinho scj, na tradicionalista dos Garotos de Ouro (LP Garoto Brasileiro, 1992), num pagode de Choquito (de 1995), do DVD Pra tomar cachaça (2017), na música sertaneja de Luan Estilizado, e até mesmo no rock da banda portuguesa Xutos & Pontapés. Não é à toa que se trata de uma expressão antiga, oriunda de Portugal e ainda hoje conhecida no Brasil. Foi utilizada para definir uma pessoa sem bens materiais, sem posses. “Ele não tem eira nem beira” era a forma de mães e avós argumentarem para problemas que suas filhas e netas teriam se casando com um pretendente paupérrimo, sem um mínimo pedaço de terra e sem casa própria. O articulista confessa que ficou surpreso ao perceber que a expressão é ainda utilizada, e mais surpreendente, ser título de músicas ou letras, tão atuais.
O autor oferece o artigo aos seus mestres, Carlos Alberto Cerqueira Lemos, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, com quem aprendeu através dos livros e em raros encontros pessoais; a Júlio Nicolau Barros de Curtis, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, seu professor informal, em muitos encontros profissional ou fortuitos, à Sônia Nara Pereira Rêgo Mascarello, professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, professora oficial do mesmo, que muito o influenciou, aos estudantes de arquitetura e urbanismo e arquitetos, principalmente aos que foram alunos do autor, e também aos guias de turismo brasileiros, pela dedicação profissional.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
CORONA, Eduardo & LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. Dicionário da Arquitetura Brasileira. São Paulo: EDART – São Paulo Livraria Editora Ltda., 1ª edição, 1972.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
MASCARELLO, Sônia Nara Pereira Rêgo. Arquitetura Brasileira: elementos, materiais e técnicas construtivas. São Leopoldo, UNISINOS, 2ª edição, 1982.
Casas de Marechal Deodoro – G1/Globo
Ilustrações:
Figura 1 – Beirado com cachorros. Foto: Acervo do arquiteto Eduardo Kneese de Melo.
Figura 2 – Telhado de Fo tipo capa e canal ou capa e bica, com cimalha de argamassa formando frisos horizontais. Foto: Maturino Luz.
Figura 3 – Telhado de telhas de barro do tipo capa e canal ou capa e bica. No telhado mais elevado encontra-se a chamada cimalha boca de telha. No mais baixo, a cimalha do tipo beira-seveira. Foto: Maturino Luz.