Aqueles que defendem um Estado Mínimo talvez precisem ser lembrados que, no Brasil, durante a ditadura militar, vivemos um Estado Máximo. Havia empresa estatal para qualquer coisa que se pudesse imaginar. Inclusive uma EBTU – Empresa Brasileira de Transportes Urbanos, que planejava e investia pesado em sistemas de transportes públicos, como diz o nome, urbanos. Foi extinta em 1991 pelo presidente Fernando Collor de Mello.
Foi Collor quem deu início à política neoliberal de Estado Mínimo, eliminando ou privatizando até mesmo serviços essenciais à população. De lá para cá, o Estado vem encolhendo significativamente. Eu, que defendo um Estado Necessário, fico impressionado com a sanha dos que o querem cada vez menor, substituindo-o por um abstrato Mercado.
Mercado que não está nem interessado, nem capacitado, para ocupar o lugar de empresas, institutos, secretarias e conselhos que se dedicavam a pensar o país como um todo. Uma empresa, por mais que tenha responsabilidade social, vai realizar sua missão e objetivos de olho na satisfação pecuniária de seus administradores, sócios e acionistas. Não tem por que, por exemplo, se preocupar se os vetores de origem-destino da população de uma cidade estão bem atendidos pelo transporte público ou não. Até pode fazer isso se for demandada e paga. Mas demandada por quem? Quem está preocupado com isso?
O fato é que cérebros e mais cérebros foram realocados ou despedidos dos três níveis do governo brasileiro. No Rio Grande do Sul, recentemente, por exemplo, foram extintas a FEE (Fundação de Economia e Estatística), a Fundação Zoobotânica e a Metroplan (Fundação Metropolitana do Planejamento). Na prefeitura de Porto Alegre não foi diferente. Primeiro foi extinta a famosa SPM (Secretaria do Planejamento Municipal), depois a não menos famosa SMAM (Secretaria Municipal do Meio Ambiente), ambas fundidas na SMAMUS (Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade). Da primeira, que acompanhei de perto como estagiário, sumiu um pavimento inteiro de arquitetos e urbanistas que se debruçavam sobre o planejamento da cidade. A lista completa de entidades e instituições fechadas tomaria conta desse espaço. Muita, mas muita inteligência foi eliminada do setor público. E muita, muita está lá sem exercer a autoridade do saber.
Comecei a pensar em tudo isso quando observei a nova tabela de horários do ônibus que já quase não passa aqui na esquina. O que está acontecendo com o transporte público dessa cidade? Onde foram parar os tantos projetos que foram feitos para melhorar nossa mobilidade urbana? Por que a população que depende do transporte público tem que passar por um suplício esperando o ônibus que não vem e que, quando chega, está lotado?
A extinta EBTU buscava soluções para o transporte público de massa das cidades brasileiras. Apoiavam prefeituras com assessoria, projeto e financiamento de novas soluções para a mobilidade urbana. Também fomentavam, através de relações internacionais, a formação de quadros de especialistas. Eu mesmo fui indicado para uma bolsa-estágio do governo francês. Na volta, trabalhei no CEDU, Conselho de Desenvolvimento Urbano do RS, planejando, com quadros da Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes (GEIPOT), os transportes urbanos das principais cidades do interior do Rio Grande do Sul. Nenhum dos dois existe mais.
Trago essa pequena amostra de siglas mortas para que se possa ter uma ideia da quantidade de profissionais que se dedicavam a olhar o país, região ou cidade como um todo, planejando e fazendo projetos pontuais. Ganhavam para isso. Essas instituições formavam um acervo intelectual que foi jogado fora. A inteligência de uma nação é guardada e transmitida através de pessoas que permanecem em suas posições enquanto os governos passam. Não tem outra maneira. Sempre é bom lembrar: estado é uma coisa, governo outra.
Transformar projetos em obras depende dos governos. Quem se dispuser a pesquisar nos jornais da capital vai ficar espantado com a quantidade de projetos que foram divulgados em detalhes, com fonte de recursos e datas de conclusão. E nem estou falando dos famosos projetos da Copa Mundial de 2014 que nunca foram concluídos. Falo desde antes: linhas de metrô, Ligeirinhos, VLT, Aeromóvel e muito mais ciclovias. Nada foi feito. E nem se promete mais, não há autores nas repartições para defendê-los.
Mobilidade urbana vai seguir nos discursos de campanhas eleitorais como se fosse algo mágico, que se compra pronto, basta botar dinheiro e fazer obras. Mas não, é preciso muito conhecimento acumulado e sabedoria para privilegiar usuários diante dos interesses do que é visto como mais um negócio da cidade. E isso não se compra em licitação pública, se constrói dentro do próprio estado.
Pior é que chegamos a um ponto, levados pelas duas últimas administrações da cidade, que teremos que começar tudo do zero. Nem a Carris, empresa pública de ônibus, temos mais. Uma insensatez sem tamanho, não posso deixar de dizer. Ela é que devia ter absorvido as demais.
Quem pode, então, anda de carro ou Uber. Quem não pode, que se conforme com o que o mercado oferece.
Foto da Capa: Leonardo Contursi/CMPA
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