Há três anos perdi meu pai, Maurício Bliacheris. Sua partida foi repentina, não estava doente, pelo contrário, nos deixou de modo repentino, ao tropeçar na escada de uma sinagoga em Tel Aviv, enquanto viajava com a minha mãe.
O luto no judaísmo tem vários rituais. Entre eles, o costume anual de orar em memória de quem partiu na data de seu falecimento pelo calendário hebraico. No último sábado, fui à sinagoga para recordar meu pai. Mesmo que eu já tenha recitado a oração dos enlutados tantas e tantas vezes, ainda tropeço na pronúncia de suas ríspidas palavras aramaicas. E se você não fala aramaico, nem tente me criticar!
Um requisito básico para essa oração é a presença de dez homens adultos (mulheres são contadas nas sinagogas não-ortodoxas). O luto judaico é coletivo, a comunidade se despede de um de seus membros, com a família do falecido no centro dos ritos.
Logo após a morte de um familiar, o costume judaico é que sua família próxima fique em casa por uma semana, o que é chamado de shivá. Durante este período, eles não saem de casa, não se enfeitam ou trabalham e recebem visitas de amigos e parentes. Nesses dias, deve ser obedecido uma tradição judaica que aprecio muito: não se deve puxar conversa com um enlutado, o diálogo deve ser iniciado pela pessoa que sofreu a perda, se e quando ela quiser falar.
Nessa semana, são suspensas as exigências sociais corriqueiras e somos autorizados a abraçar a nossa dor. Porém, em nossa sociedade viciada em comprar e que vive de modo acelerado, o luto cada vez mais me parece um costume em extinção. Afinal, o que pode ser mais destrutivo para a sociedade de consumo do que abrir mão de trabalhar ou consumir, deixar de usar cosméticos e até mesmo renunciar ao conforto? Como fazer isso enquanto o prefeito da cidade onde vivo, no meio de uma epidemia mortífera, pedia que as pessoas contribuíssem com sua vida para salvar a economia?
No entanto, o luto teima em viver. Porque é uma necessidade humana, demasiadamente humana. Lembro na faculdade de Direito, uma das leituras mais marcantes que fiz foi a da tragédia grega Antígona. Uma heroína que defende com unhas e dentes o direito de dar um enterro decente ao seu irmão. Discutimos o texto em sala de aula, com debates conduzidos pelo professor Rui Portanova. Permitir um fim decente mesmo aos inimigos tornou-se, para mim, uma medida da humanidade de uma pessoa ou de uma civilização.
Por isso, me emocionei ao ver o presidente Lula ser recebido pelas Mães da Praça de Maio. Mulheres argentinas que não se calaram frente a uma ditadura sanguinária que lhes roubou a vida e a morte de seus filhos e filhas chamando-os de desaparecidos. Se alguns dizem que não há crime sem cadáver, na América Latina podemos dizer que o crime não acaba enquanto não houver um cadáver para ser velado e rendidas as derradeiras homenagens. O desaparecido e suas famílias são vítimas de um crime interminável.
Tampouco esqueci a manifestação desumana de um então obscuro deputado extremista, ex-capitão do Exército Brasileiro, ao afixar, na porta de seu gabinete, um cartaz zombando das famílias de desaparecidos da ditadura militar que lutavam pela oportunidade de dar um funeral a seus entes queridos. Quem gosta de osso, é cachorro, dizia ele.
Por isso, não estranhei quando, em meio a maior pandemia de nossos tempos, ele invalidou o luto alheio. “E daí? Não sou coveiro”. “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”. Era isso que ele tinha a dizer diante de centenas de milhares de mortes. Mesmo diante de mortes de pessoas célebres que comoveram o país, não foi capaz de escrever uma manifestação de luto.
À dor da morte de uma pessoa amada soma-se aquela causada pela negação do luto. Como seguir em frente sem poder chorar nossos mortos?
Revivi essa sensação angustiante ao ver as imagens do morticínio yanomami e saber que eles abriam mão de seus rituais por não terem condições de realizá-los já que aldeias inteiras estão doentes. A mesma dor que surgiu ao ver os pais dos adolescentes mortos na boate Kiss em Santa Maria em sua luta por justiça. O Estado, que não evitou a tragédia, tampouco pune os responsáveis por ela.
Em todos os casos, sem justiça não há luto. Assim, a possibilidade de ocorrerem tragédias similares fica sempre em aberto.
Por outro lado, senti um alívio imenso ao ver o Ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, lamentar a morte da antropóloga e ativista Adriana Dias. Quando da partida da jornalista Glória Maria, fiz questão de ler a nota da Presidência da República dividindo conosco a tristeza pelo falecimento dela.
Enquanto pudermos chorar e lamentar a morte de quem amamos, há vida. A morte nos entristece, mas a vida vencerá.