Uma coisa que me impressiona nas cidades brasileiras em geral, e mais especialmente em Porto Alegre, são as condições materiais dos serviços públicos destinados à população mais pobre. Em Chibata Diária falei das péssimas condições do transporte público, notadamente utilizado por essa parcela da população por falta de outra opção. Mas esse tratamento é igualmente estendido aos demais serviços públicos e também ao ambiente urbano em que essa população reside ou circula. Pode-se perceber, com facilidade, uma geografia que delimita espaços públicos para ricos e pobres. A substituição do piso de granito de três cores que formavam bonitos desenhos geométricos na Rua dos Andradas, antiga principal rua comercial da cidade – e, portanto, dos abastados – por vulgares placas de cimento, agora que a rua se tornou popular, é um bom exemplo dessa atitude.
A diferença entre bairros ricos e pobres deveria se dar na qualidade dos imóveis privados e não na quantidade e qualidade dos serviços públicos, na diferença de pavimentação, iluminação, arborização ou na presença ou ausência de outros pormenores que dignificam e dão beleza ao lugar. A mesma ideia de que para pobre o ônibus montado em cima de caminhão basta é a que vem sendo adotada no território da cidade.
Para ficar claro o que estou querendo dizer, chamo a atenção para o que a prefeitura fez recentemente no território dos ricos. No bairro Petrópolis — nas imediações da av. Bagé — já próxima à terceira perimetral —, além de ter asfalto melhor que a maioria das avenidas da cidade, recebeu uma caríssima sinalização gráfica de trânsito que dificilmente outro bairro da cidade conhecerá. Vale dizer que a maioria das balizas plantadas no asfalto já está quebrada e não foi reposta, mas a questão não é essa. Qual poderia ser a justificativa para investir – ou desperdiçar – tanto dinheiro ali se não o fato de ser uma região de edifícios luxuosos, de alto padrão?
No mesmo sentido, o South Summit, um evento privado realizado no Cais Mauá, que está em vias de ser privatizado, recebeu, a título de “dar uma forcinha”, 24 milhões do Governo do Estado e 3,2 milhões da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. É preciso dizer que foi um evento de e para a elite, com cobrança de caríssimos ingressos. E se é para a elite, os governos fazem questão de contribuir para que o evento tenha o padrão adequado a ela. Tudo de primeira, ao contrário do transporte público…
O título para a coluna até aqui estaria mais para Dois Pesos e Duas Medidas, mas não foi o que pensei ao cruzar a Av. Azenha e passar na frente do Instituto de Identificação em direção ao Centro de Logística de Medicamentos Especiais (CELME), que fica ao seu lado. O que vi nesse trajeto foi a absoluta falta de peso ou medida. Um descalabro total.
A Avenida Azenha, impressionante com seus 40m de largura, é muito mal aproveitada. Um mar de asfalto (35m) para um fluxo de veículos que não se justifica. As calçadas, ao contrário, são acanhadas (2,5m cada) para o fluxo de pedestres. Uma desproporção absurda. Sem falar dos desníveis e buracos que tornam a caminhada um rally. Os dois edifícios públicos falam de desleixo e falta de asseio. Um deles, construído recuado do alinhamento, aproveita a calçada como inusitado estacionamento. Não se vê nas redondezas qualquer vestígio de atenção ou interesse do poder público em cuidar do lugar.
Enquanto esperava minha vez de ser atendido, não tive como não pensar no que se poderia fazer ali com uma parte dos 27 milhões empregados no South Summit e dos outros tantos aplicados no asfalto de Petrópolis. Possivelmente delirando pelo forte calor e abafamento da sala lotada, vi como uma miragem esse trecho da Av. Azenha, entre a Praça Piratini e a Av. Ipiranga transformado em um oásis verde. O asfalto tinha sido arrancado com a mesma energia que o faz a prefeita de Paris, as pistas reduzidas ao realmente necessário, algo como 12m, se tanto, e os 18m que sobraram tinham se transformado em um mini parque linear de 350m de extensão. A partir daí, o delírio correu solto: gramados e árvores, bancos e, principalmente, beleza para descansar nossos olhos enquanto esperamos nossa vez de ser chamado.
Juntei com o sonho anterior, Um boulevard, por favor, e também pelo que me persegue cada vez que vejo uma rótula pintada no asfalto: o de plantar uma ou mais árvores no interior desses círculos. Já não sentia o desconforto da espera, estava feliz vivendo em uma cidade habitável, amigável, voltada para seus cidadãos de todas as classes, em um porto alegre como seu nome queria ser.
Sr. Flávio, sr. Flávio, a voz me traz de volta ao mundo onde sonho é para ser sonhado à noite, dormindo. O dia é para se viver a realidade da feiura, do descaso, da discriminação e da espera da próxima catástrofe ambiental. Bom dia a todos, sem ironia.
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