Duas coisas aparentemente sem correlação direta andaram frequentando diferentes porções do noticiário nas últimas semanas, e eu, de minha parte, vejo uma conexão bastante significativa entre elas. A primeira provavelmente todos vocês já leram ou ouviram falar a respeito: a proposta de emenda constitucional que circula neste momento na Câmara dos Deputados, de autoria da parlamentar Erika Hilton, para abolir a jornada de trabalho 6×1 no Brasil.
Sem entrar especificamente nos méritos e deméritos do projeto ou em suas polêmicas, ou na forma orquestrada como a extrema-direita do Brasil já apresenta os seus substitutivos para melar a proposta, me parece que essa PEC já justificou sua existência simplesmente por tornar o tema da escala de trabalho dos mais pobres debate nacional. É a primeira vez na memória recente que uma legislação reformista no campo do trabalho pauta a discussão pelo ponto de vista do trabalhador, e não dos empregadores, como vem ocorrendo sistematicamente desde o impeachment de Dilma Rousseff e os dois governos conservadores subsequentes (um deles de extrema direita não declarada, mas de facto)
O que se começou a discutir com afinco nessas últimas semanas desde a apresentação da proposta é algo mais do que déficit previdenciário, impostos, “falta de incentivo ao empreendimento”, “negociação direta”, fim do FGTS ou todos esses temas que são de interesse direto do patrão (e, portanto, são abraçados de modo acrítico pela mídia corporativa, que é, a seu modo, uma indústria, então fala pelos seus – usando para isso, ironicamente, jornalistas, uma massa de manobra que se considera politizada e intelectualizada, mas está, e se recusa a ver isso, no mesmo patamar de peão que qualquer servente de pedreiro). Pela primeira vez em muito tempo, a pauta migrou das agruras do pobre empresário, pegando em armas contra o mar de angústias de um sistema que não o permite empreender, coitadinho, para a questão do tempo do funcionário, sofrendo na alma as pedradas e flechadas do destino feroz e sem poder administrar seu tempo devido às imposições da vida.
Essa discussão hoje tão candente expôs o quanto, ignorada pela classe média que há anos sofre e sofre muito pelos seus próprios e umbilicais problemas, existe a vasta massa de trabalhadores aprisionada em um cotidiano que retira do trabalhador o lazer, a pausa, a reflexão e até o entretenimento, com o beneplácito da turma que defende que qualquer outra alternativa seria “comprometer a produção”.
Um parêntese
Aliás, um parêntese. Todo ano, o mesmo jornalismo econômico vergonhosamente sabujo do poder comemora aumentos exponenciais de exportações. Ao mesmo tempo, nas poucas vezes em que a discussão parece querer mudar de foco, discutindo não o ritmo da produção e sim o quanto esse estado de coisas cobra do trabalhador em uma rotina exaustiva, esses mesmos setores do jornalismo hegemônico desdobram-se em análises de o quanto uma determinada medida favorável ao trabalhador, por mais tímida que seja, vai “comprometer a produção”. O que me faz perguntar: pra quem se produz tanto? Para vender para a China, Estados Unidos, Mercosul (talvez agora a União Europeia)? Então é pra isso que se quer todo mundo trabalhando na base do chicote?
Aliás, agora que pensei nisso, me dou conta de que um dos motivos, talvez, pelos quais a imprensa tradicional, principalmente a outrora de papel migrada para ao ambiente digital, mas também a das grandes TVs, está tendo problemas mil de audiência, relevância e até de credibilidade é que, embora a imprensa goste de defender sua própria necessidade apelando para o argumento de que jornalistas especializados trabalhando nas estruturas hegemônicas da imprensa como indústria fazem a “curadoria” das notícias no aluvião das informações diárias, e ainda assim, com essa retórica, o motivo pelo qual a imprensa anda apanhando não só do mundo digital, mas dos fatos, é que o modelo de jornalismo dividido por “editorias” da grande mídia ou não funciona mais ou precisa ser reformulado.
Na teoria, as editorias existem para reunir jornalistas que se especializam num tema e o acompanham com regularidade. Na prática, no atual modelo, as redações investiram no fim da especialização dos jornalistas (para poder remanejar com mais liberdade equipes em que um cara vai cobrir a Assembleia Legislativa numa semana e a Feira do Livro na outra) em um modelo em que ainda as editorias são ilhas separadas e não tem ninguém cuidando do tom geral da coisa toda. Não dá para ter o colunista de economia defendendo que o fim da escala 6×1 é um desastre social e, ao mesmo tempo, ter o caderno de “saúde e bem-estar” na mesma edição com uma matéria superficial sobre “o problema do burnout” sem que os dois textos dialoguem minimamente, e na prática não é isso o que ocorre. Mas ninguém dá a mínima para jornalismo e jornalistas, então eu encerro por aqui esse parêntese e deixo a vocês a missão de, se quiserem, ampliar o tópico analisando os veículos que vocês mesmos aí leem ou acompanham.
Sem parar
A grande discussão aberta pela proposta do fim da escala 6×1 é o fato de que, apesar de todas as promessas feitas pelos profetas do avanço tecnológico, as mudanças ocorridas nos processos de produção não aliviaram ninguém de trabalhar, pelo contrário, todo mundo anda trabalhando demais. Ainda mais os proletários que são contemplados por essa escala e que por vezes são uma sombra invisível no cotidiano do trabalhador remediado: você compra no mercado todos os dias da semana, então alguém precisa estar lá atendendo, por exemplo. E se deixada “livre para negociar”, a empresa não vai adotar uma escala mais “humana”, digamos, e contratar mais gente para manter as mesmas horas, e sim espremer o quanto de horas puder do mesmo trabalhador precarizado (bem-vindos ao conceito de “mais-valia”, amiguinhos).
Curiosamente, esse tema do trabalhador que, assoberbado pelas pressões do trabalho, tem pouco tempo para viver uma vida plena foi tratado por dois lançamentos recentes de grande impacto na literatura nacional: Vera, novo romance de José Falero, e De Onde Eles Vêm, de Jéferson Tenório, ambas obras que, a sua maneira e dentro de suas próprias propostas, problematizam as dificuldades enfrentadas por uma classe de trabalhadores para quem nem mesmo as mínimas políticas públicas são efetivas justamente por não conseguirem lidar com as demandas avassaladoras do tempo. E essa circunstância meio que tangencia a segunda temática que, para mim, se vincula à discussão sobre o tempo do proletário: ninguém tem tempo pra mais nada devido à marcha contemporânea do capitalismo. Principalmente para ler.
Leitura no Brasil
Foi divulgado recentemente o novo relatório da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, desenvolvida pelo Instituto Pró-Livro (IPL). A pesquisa vem sendo realizada com consistência desde 2007, sendo, portanto, um panorama diagnóstico interessante sobre o estado das coisas dos hábitos de leitura do brasileiro. E a versão mais recente, compilada a partir de 5.504 entrevistas em 208 municípios, é alarmante.
Mais da metade dos brasileiros (mais especificamente 53%) declarou que, nos três meses anteriores à entrevista, não havia lido nenhum livro, seja em parte ou no todo. Também foi a primeira vez desde o início da pesquisa pelo IPL, em 2007, que os índices de não leitores superaram os de leitores.
As duas principais justificativas para esses resultados são vinculadas, a meu ver, com o assunto anterior: dispersão da atenção de leitura diante de um sem número de outras alternativas para uso do tempo livre (a maioria declarou passar mais tempo navegando ou em redes sociais ou aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram, mas a boa e velha televisão também ocupa um bom espaço, 60% no cotidiano dos brasileiros) e… falta de tempo, apontado como motivo por 46% dos leitores e 33% dos não leitores.
Dentre as formas cotidianas de entretenimento, vamos com essa palavra, embora eu a considere insuficiente, a leitura talvez seja a que menos se adapta ao caráter “multitarefa” da cultura contemporânea, porque ela exige uma interação ativa do leitor com a página (seja digital, seja de papel) para que a compreensão e a fruição do texto seja plena. O que talvez explique outro dado da pesquisa: 36% dos entrevistados admitiram que têm dificuldade para reter e compreender a maior parte do que leem. Bem ou mal, algo que se conecta com a primeira coluna que escrevi neste espaço há um par de anos (leia aqui).
Mesmo entre não leitores falta tempo para ler. E isso não é um problema isolado do livro como instituição, mas está enraizado nessa falta crônica de tempo que a sociedade de consumo contemporânea reserva para o lazer do trabalhador em vastos extratos da população. Para alguns, o tempo é curto e o número de alternativas é grande. Para outros, nem esse tempo está disponível – ignore a cretinice dos discursos de “coach” ao estilo “quem quer consegue” e se imagine trabalhando em pé num posto de gasolina por seis dias, durante oito horas, depois viajando uma hora para chegar em casa moído com o cheiro de combustível já praticamente impregnado nas narinas para ter alguns poucos momentos em casa antes de tudo começar outra vez no dia seguinte e me diga se esse é o tipo de ambiente propício para a “criação de leitores”. Aliás, se a criação de leitores fosse mesmo uma preocupação, haveria mais programas e políticas públicas para isso, algo que nem o atual Governo Federal, eleito com o apoio de boa parte da massa dos trabalhadores da Cultura, soube fazer ainda.
Não é à toa que encerro este texto com um terceiro tópico que me ocorreu enquanto escrevia. O dicionário Oxford da língua inglesa elegeu como a palavra de 2024 a expressão “brain rot” – que, em português literal, seria “cérebro podre”, e no nosso português poderia ser substituída talvez por outras expressões já existentes como “leseira” ou “cabeça de vento” se estas não tivessem significados tão associados a outros motivos. O Cabeça de Vento costuma ser adotado para definir o distraído crônico, apartado do mundo por alguma predisposição sonhadora particular. A “leseira” é o nome dado ao mal-estar ou ao alheamento normalmente associado com o abuso de certas substâncias… recreativas, digamos, legais ou ilegais.
Talvez precisemos de uma nova palavra para explicar nossa atual degeneração cerebral tanto quanto precisamos, todos nós, de tempo.
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Davi Pinheiros/Movimento Vida Além do Trabalho / Divulgação