Não vamos mentir, a gente ama e odeia a tecnologia, dependendo do momento. A vida ficou mais fácil com ela e mais difícil por causa dela, e vou te provar.
Você nunca mais teve o prazer de encontrar dinheiro de verdade no bolso de uma roupa que não usava fazia muito tempo. Se achou, é de uma moeda que não existe mais, talvez um cruzeiro ou réis, porque afinal, ninguém mais usa dinheiro de papel além do banco imobiliário.
Concorda comigo no crédito, débito ou aproximação?
Reclamar pessoalmente para um prestador de serviços é um prazer que nunca vou perdoar a tecnologia por ter me tirado. Muito bom não ter que ir presencialmente à central de atendimento, pegar senha, esperar na fila… mas a tecnologia nos deu mensagens automáticas, botões que nos desconectam, fazem voltar ao menu principal ou não encontrar a opção desejada. Quando chega no atendente, você já repetiu tantas vezes o problema e tá tão cansado que não tem mais nem paciência pra perder.
Pode permanecer na linha e avaliar o meu atendimento ao final?
O celular, ou melhor, o lugar onde boa parte da vida da gente está compactada, toca sem parar com ligações de robôs e picaretas que sequestraram alguém da família ou querem conferir os dados bancários por filantropia. Esses pensei em perdoar porque não gosto de falar no telefone e essa virou uma desculpa perfeita para não atender uma ligação. Mas a sofisticação dos pilantras usando IA para copiar a voz indica que todos vamos, em algum momento, cair em algum golpe.
É só uma questão de tempo.
Grupo da família no WhatsApp, ou a versão digital do inferno. Se nos poucos encontros presenciais antigamente sempre saía uma briga, imagina aquele monte de gente diariamente se mandando bom dia, bobagem, boa tarde, mais bobagem, boa noite, serviços de inutilidade pública, indireta, direta, fake news, fofoca, intriga e um “amo vocês, família” no final.
Tudo certo pra dar errado.
Se perder indo para algum lugar e acabar encontrando um lugar mais legal. Com GPS, a gente chega ao destino sem ter que olhar em mapa ou receber instruções personalizadas de alguém na rua, como “segue reto toda vida”. Era divertido ir pelo caminho errado. Hoje, pra se perder, tem que desligar o aplicativo, senão temos que discutir com uma voz de lata que fica o tempo todo te dizendo que está errado.
Estamos recalculando a sua trajetória de vida.
Escrever um texto usando ferramentas antigas como papel, lápis e cérebro. O ChatGPT é ótimo pra algumas coisas, me rendo. Pra escrever coisas chatas e resumir um conteúdo que foi desnecessariamente prolongado, é campeão. Mas fala aí, você acha que as futuras gerações vão conseguir escrever e pensar sem usar essa bengala?
Descreva, no estilo de matéria jornalística, em um parágrafo, o futuro do pensamento crítico e da escrita.
Sair batendo perna na rua por horas e não encontrar exatamente o produto que precisava, para depois voltar pro comércio e encontrar o objeto de necessidade ou desejo. Hoje é só clicar, e achamos o produto que a gente precisa, não sem antes comprar uma dúzia de inutilidades e futilidades desnecessárias, e que colocamos no carrinho virtual porque não estamos vendo a porcaria que é e o pagamento só vem na próxima fatura do cartão.
Deseja seguir para o pagamento ou continuar comprando?
Ir num restaurante ou no cachorro-quente da esquina, saindo de casa e socializando, sem pedir a comida pelo aplicativo. O evento era especial e sempre rendia um passeio.
Como você avalia a nossa entrega?
Falando em comida, comer sem fotografar e postar era uma coisa que se fazia na antiguidade. Não tinha ângulo nem cenário, enfeite nem luz certa. Era garfo no prato e barriga cheia.
#comidinhasaudavel
Postar e ostentar era outra coisa mais difícil de fazer, e restrita às pessoas que se conheciam. Tinha slides ou álbum de fotos pra olhar e detalhes intermináveis do itinerário. Hoje todo mundo precisa postar que já fez o exercício do dia com foto de ladinho, da sua viagem #sonhorealizado e o dia na praia com sua pose combo falsiane + bico de pato.
O de hoje tá pago!
A gente vivia sossegado sem saber da existência de certas criaturas. A internet fez as baratas virtuais, mais conhecidas como influencers, aparecerem na vida da gente.
Não há o que não haja!
Clique, compartilhe e se inscreva.
Ignorar alguém ou fugir de um mala. Era fácil, a gente tinha uma capa da invisibilidade e não sabia. Hoje te acham pelas redes sociais, e-mail ou WhatsApp, e não adianta bloquear porque o chato que quer te encontrar manda um Pix de 0,01 centavo só pra mandar um “Oi, sumida” no campo descrição da transação.
@chatopracacete começou a seguir você.
E, apesar de ser superfã do home office, a tecnologia expandiu o horário de trabalho pra 24/7 em escala 365 por 0. Tente não responder um e-mail ou WhatsApp em minutos e aguarde a explosão de ansiedade que isso vai causar.
Mensagem recebida há 5 minutos. Deseja responder agora ou agora?
E quando é hora de relaxar, ao invés de alguns discos de vinil e uma dezena de canais de TV, agora a gente tem centenas de canais mais os serviços de streaming e os aplicativos de música. Perdemos mais tempo escolhendo do que vendo ou ouvindo, e menos tempo lendo e imaginando.
Você ainda está aí? Deseja continuar assistindo?
Não estou dizendo que “no meu tempo era melhor” porque esse, agora, é também o meu, o nosso empo. Todas essas facilidades são maravilhosas, mas o que eu realmente sinto falta é de achar dinheiro perdido nos bolsos dos meus casacos.
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Foto da Capa: Gerada por IA.