Eu sempre fui mais além do pensar, mesmo pensando muito. Sempre. Demais até, desde pequena. Sentir sempre foi meu esquema, minha saída e meu algoz. Observar e sentir. Hoje, o sentir é mais valorizado do que antigamente, mesmo que muita gente ainda o ignore e o coloque em segundo plano em favor do pensar. Mas, como menciona o título, sentir é uma arapuca.
Arapuca porque abre precedentes para percebê-lo como uma percepção singular, pessoal e subjetiva. Em casos de abuso, assedio sexual ou moral, não é raro ouvirmos como pedido de perdão de eventuais acusados a frase “desculpe eu fazer você se sentir assim” (abusada, assediada, desrespeitada). Aí entramos num sentir complexo, pois não fui eu quem cometeu um ato ilícito ou abusivo, mas sim VOCÊ que se sentiu assim. Isso coloca na vítima a responsabilidade do sentimento e não no ato do abusador, o crime e a violência.
Ao mesmo tempo, se há algo que a vida, a análise e os meus vínculos foram me ensinando é que o sentir dá uma validação inquestionável (o que parece ir de encontro à ideia previamente colocada, especialmente quando se tratam de questões jurídicas de acusação). Mas o que quero dizer é que fui aprendendo que dizer que me senti de determinada forma perante a colocação ou atitude de alguém impossibilita que o outro diga que não o fez. Porque sobre o sentimento de alguém ninguém pode arbitrar ou negar. Certamente, a pessoa poderá argumentar que essa não teria sido sua intenção ou que não percebeu que poderia gerar determinado sentimento no outro. Mas quando algo lhe é comunicado de que um ato ou uma fala sua gerou determinado sentimento, coisa que é pessoal, profunda e intransferível, há que se prestar atenção e rever o que pode ter sido interpretado de determinada forma e chegar-se numa conversa bonita e de aprendizado para ambas as partes. Às vezes, quem sente, sente por demais, baseado em traumas prévios ou marcas antigas que se atualizam sem que o interlocutor atual faça ideia de que esteja acionando.
Então, sentir não garante nada, mas afirma um estado que merece ser escutado. Por quem o sente e por quem o pode ter despertado. Assim vão se tecendo e aprofundando as relações, bem como o conhecimento de si.
E por falar em conhecimento de si, esse último final de semana, em um jantar entre alguns casais e amigos, surgiu o tema da análise e algumas pessoas, ao saberem que meu tratamento analítico é de alta frequência, se surpreenderam muito (isso ainda acontece bastante) e a fala que escutei foi no sentido de que então eu tenho que estar com todos os meus problemas muito resolvidos. E minha resposta foi que não (obviamente), mas que apesar disso, eu já conheço muito bem meus fantasmas agora. Sei como são, quando e onde aparecem – não que isso me previna de topar com eles com alguma surpresa de vez em quando – e que isso me dá uma possibilidade de antecipação e cuidado que já vem me protegendo de muitas arapucas nessa vida.
Mas a do sentir, ah! Essa, por sorte, ainda caio, e muito. Sinto muito tudo, às vezes demais.
Mas o que seria da vida sem essa armadilha linda que é sentir tudo que alguém se permite sentir?
Foto da Capa: Gerada por IA / Freepik
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