A vida em seu mistério e beleza é a inspiração dos artistas, que buscam sua representação através da palavra, do som e da imagem. Mas há um ainda além, dos povos originários, que encarnam a palavra, o som e a imagem. O yanomami Davi Kopenawa diz que “os artistas sonham quase como nós, xamãs, mas seus sonhos se tornam como que peles de imagens, para se olhar. Nós fazemos dançar as imagens dos animais do primeiro tempo para cuidar dos nossos e proteger a floresta.” Floresta que os yanomami veem como um ser vivo, um sopro vital responsável por sua exuberância, umidade e frescor, e dotada de um espírito-imagem que se faz presente nas visões xamânicas.
Já houve o tempo em que todos nós éramos originários. Talvez por isso ainda hoje existem pessoas que vivem animicamente, e outras que, ao menos, intuem o sopro vital nas entidades animadas e inanimadas. Descrever a transição humana de um modo a outro de existência é tarefa praticamente impossível – ainda é. Só o Homo Sapiens caminha sobre a Terra há 200 mil anos e não há dados do que aconteceu em grande parte desse tempo. O que sabemos é que a narrativa do homem branco europeu, o colonizador, pretendeu – e conseguiu, por séculos – desqualificar os povos originários em seus viveres, taxando-os de infantilizados ou brutais, inclusive como forma de justificar a catequização ou os genocídios. Há farta literatura que elucida a construção dessa narrativa falaciosa, sendo recente O despertar de tudo, de David Graeber e David Wengrow (DW fará conferência no Brasil em outubro, pelo Fronteiras do Pensamento), mais Amazônia, de Marcio Souza e o belíssimo Enterrem meu coração na curva do rio, de Dee Brown, entre outros.
Desde a Revolução Industrial, a concepção cartesiana do homem como o senhor absoluto da natureza, com pleno direito de subjugá-la, se acentuou e cresceram os ataques à pluralidade de saberes no campo das ciências humanas. O exemplo deste ano é o do controverso livro da microbiologista Natalia Pasternak e seu marido Carlos Orsi: “Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”: psicanálise, acupuntura, homeopatia, medicina tradicional chinesa, curas naturais, curas energéticas, poder quântico, dietas da moda, paranormalidade, discos voadores, pseudoarqueologia e antroposofia. É mais uma vez a visão rasa que rende culto à ciência da técnica como verdade única sem sequer considerar a epistemologia (do grego, episteme: conhecimento e logia: estudo).
Como dizia Albert Einstein, “só podemos encontrar respostas para as perguntas que escolhemos formular”. Avançamos largamente no conhecimento da natureza humana desde os gregos, com Sócrates, Platão e Aristóteles e depois, especialmente, com Carl G. Jung e sua exploração da psique através do inconsciente pessoal – conteúdos de nossas vidas que esquecemos ou reprimimos – e do inconsciente coletivo – nossa herança comum dos arquétipos que povoam toda a mitologia e as religiões através dos tempos. Hoje já está claro que, para além da química e da genética, há todo um mundo de intercâmbio dentro do corpo.
O avanço das pesquisas do genoma humano vem revelando dados importantes. Há uma lacuna imensa do DNA, ainda por ser decodificada, que pode representar desde vestígios da evolução — partículas e pedaços do DNA de outros organismos, nossos ancestrais evolutivos – até pistas de que esse “lixo molecular”, na verdade, desempenha funções reguladoras importantes para o corpo. A descoberta de que o refugo do DNA pode ter um propósito foi feita inicialmente pelos cientistas que aplicaram a teoria linguística nas análises. Eles descobriram “mensagens” — gramática e sintaxe biológicas — no DNA não codificante que podem influenciar o funcionamento dos genes e afetar os processos celulares. “Ao se deslocar a perspectiva da substância (matéria) para os processos da vida (energia e informação), processos de cura impensáveis em outras épocas começaram a ser descobertos”, afirma Peter Fraser, que criou o primeiro curso de graduação em acupuntura na Victoria University, na Austrália.
Saberes ancestrais estão impressos em nós – desde o início deste século, a epigenética (camada adicional de complexidade biológica que influencia o DNA) vem fazendo progresso. A percepção do corpo bioenergético – de todos os corpos – se expande e nos ajuda também a compreender melhor aquela ideia já propagada do Efeito Borboleta. Em suma, David Kopenawa expressa um preceito básico de forma simples e clara: é no cuidado com os seus e com o ambiente onde vivem que se origina o sentido da vida, do coletivo. É por isso que ser feliz por viver é o bastante (*): Despertamos no amor que se liberta da palavra que bate continência e se eleva na magia que remete à graça, ao sonho – a magia de se encantar com a vida, natural nas crianças e tão apagada nos adultos.
(*) É de Jacques Lacan a afirmação de que “quando o analisando pensa que está feliz por viver, é o bastante”. Foi considerada contraditória na época (1975), no mínimo enigmática. Médico psiquiatra e neurologista, investigador de campos que iam da filosofia e a antropologia à matemática e a lógica, das culturas hindu e chinesa aos movimentos da arte europeia, amigo de Salvador Dali e Picasso e de tantos outros artistas e pensadores, Lacan queria justamente rebelar a discussão e a prática formais na psicanálise.
Referências:
> Decodificando o corpo bioenergético: a base da ciência médica no futuro, de Peter H. Fraser e Harry Massey com Joan Parisi Wilcox — São Paulo: Editora Cultrix, 2010.
> O gene, uma história íntima, de Siddartha Mukherjee – São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
> Epigenética: como a ciência está revolucionando o que sabemos sobre hereditariedade, de Richard Francis — São Paulo: Companhia das Letras, 2015.