Semana passada falamos de liberdade humana e quero continuar um pouco mais neste tema, agora com Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher, torna-se.” Filósofa, escritora e professora, partilhava do existencialismo francês com Jean-Paul Sarte, seu companheiro de vida e de pensamento. Ela focou na questão do gênero não ser uma condição biológica/natural, mas uma construção social, para combater a visão da época quanto ao papel da mulher na sociedade, extremamente reducionista para manter uma hegemonia masculina. Sua contribuição foi notória para as mudanças da sociedade desde a metade do século XX – mesmo que a lógica masculina ainda predomine – e, mais recentemente, parece ter sido importante também para a eclosão dos movimentos pela construção e reconhecimento dos gêneros não-binários. Com os LGBTQIAPN+ (1), ampliou-se a percepção do processo de “tornar-se”. Nas novas leituras dos gêneros masculino e feminino, me chama a atenção o gênero fluido, em que a identidade das pessoas pode ser de diferentes gêneros em diferentes momentos. Mas há uma construção ainda além dos gêneros no “tornar-se”, a do humano e que é só o começo da caminhada, ou mais uma volta da eterna caminhada.
Na mitologia grega, seres esféricos e vigorosos tentaram subir ao Monte Olimpo, morada dos deuses, em busca de poder. Eram compostos dos dois sexos, quatro mãos, quatro pernas e duas faces idênticas e opostas. Diante da situação, o mais poderoso dos deuses, Zeus, decidiu cortar ao meio esses seres andróginos (do grego andrós, macho, e guynaikós, fêmea). Ao separar homem e mulher, Zeus condenou que cada metade buscasse uma a outra, com o intuito de reunir-se e curar a natureza humana. A androginia é o arquétipo do Absoluto, o mais antigo de todos, que excede a experiência humana por ter a sua essência na ancestralidade psíquica e divina da Humanidade. “O arquétipo da androginia aparece em nós como senso inato da unidade cósmica primordial, ou seja, a unicidade ou inteireza da androginia antecede qualquer separação. A psique humana é testemunha dessa unidade primordial e é, portanto, o meio através do qual podemos obter certa percepção da totalidade que inspira espanto e maravilha”, escreveu a psicóloga June Singer. (2)
Talvez tenhamos dificuldade de conceber a unidade porque ainda somos muito ligados à forma do corpo – não atentamos que todas as formas estão contidas na unidade primordial. No ser humano, a forma masculina e a forma feminina coexistem, desde o desenvolvimento biológico do feto. Um tubo sólido (fechado) é a base anatômica que ao longo dos meses irá se moldando no embrião para dar origem ao pênis e à vagina. No sexo masculino, o tubo sólido se projeta para fora da cavidade abdominal e forma o pênis. No sexo feminino, o tubo fechado vai se tornando um tubo oco que configura o canal vaginal. Ao longo das paredes laterais da vagina, se estende o clitóris, um pênis em tamanho reduzido – por não ter as mesmas funções – com glande, prepúcio e tecido erétil, com os nervos dorsais que levam a informação sensorial para o cérebro, e os nervos cavernosos, que controlam os músculos lisos e o tamanho dos vasos sanguíneos, permitindo que se dilate nas relações sexuais, da mesma forma que o pênis. Também outras estruturas da região pélvica se equivalem no corpo masculino e feminino, como as conexões dos órgãos sexuais com o ânus. Assim, somos Um na origem.
Ao nos percebermos além da forma física, ao reconhecermos a energia tanto em nós quanto no outro, sem início e sem fim – “o infinito não tem pele”, diz o mestre zen Satyaprem –, vamos avançando ainda mais em direção a um outro “tornar-se”. Podemos entender, então, que o Sistema erigiu sua estrutura de dominação focando no que nos é mais caro: o amor. O amor como motivação, condutor de prazer, no que se acredita sentir, sendo, no entanto, pensamento, determinado por passado e futuro. No signo do sexo e seus códigos, que marca nossa existência do princípio ao fim, junto ao medo da morte, fomos sendo moldados sujeitos pensantes na ignorância do Ser, do amor que em tudo habita, sendo causa e efeito. Prazer, para a maioria de nós, é uma projeção mental. Sem as vestes do Sistema, o prazer é amor.
A receptividade sensorial é ilimitada, sentir o corpo sem o barulho externo, sem construir um enredo para o amor, sem perguntas e respostas, é da liberdade humana. Soltando as amarras que nos mantém no cativeiro de dogmas e emoções conformadas, temos a chance de começar a rodar em níveis de consciência ascendentes, identificando camuflagens culturais que encobrem nossos corpos. Se não chegarmos a desvendar totalmente a origem da falsa opinião que temos de nós mesmos – a confusão do Si verdadeiro com nossos estados psicomentais, que nos tornam suscetíveis ao jugo do Sistema – poderemos, ao menos, já começar a sentir mais verdadeiramente o nosso corpo. Ao fim e ao cabo, Ouroboros, nos converteremos em energia pura, com a única função de nutrir e embelezar o planeta, o cosmos.
- Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/ Arromânticas/Agênero, Pan/Poli, Não-binárias e mais.2.
- Androginia: rumo a uma nova teoria da sexualidade (Cultrix, 1990), da psicóloga estadunidense June Singer (1920 -2004), fundadora do Clube de Psicologia Analítica de Chicago, do Instituto Jung de Chicago e da Sociedade Inter-Regional de Analistas Junguianos.