“A dúvida nos faz humildes. A certeza nos faz perigosos. Se tudo fosse certeza, não precisaríamos de fé” Cardeal Lawrence, Conclave.
Se passaram 7 dias de minha última coluna em Sler sobre a morte de minha tia. Diz a tradição que se deve pedir uma missa. Vou à igreja da minha paróquia. Entro na secretaria da igreja, onde a secretária, uma senhora idosa, me recebe. “Quero pedir uma missa para minha tia”, digo. “Encomendar sua alma?”, ela me pergunta. Não tem jeito. O termo, mesmo que seja em outro contexto, me lembra mais uma vez que estou de volta ao capitalismo, mesmo quando se trata de pedir orações pela salvação da alma dos que já partiram na missa, costume que tinha minha mãe. Mesmo quando vou pedir ao padre que ajude minha tia a chegar ao céu, na hipótese de ele existir e ideia com a qual simpatizo muito, ainda assim preciso me colocar como se estivesse diante do site da Amazon ou do atendente das lojas de departamentos. Respondo que sim e vejo que ela aguarda uma contribuição espontânea. Quase pergunto se pode ser no débito por aproximação, já que também elas, as maquininhas de cartão, parecem ser as primeiras a ter contato com o espiritual. Alguém vê alguma coisa quando aproxima o cartão na maquininha? Ou um bit de informação, aquele 0-1 concretamente? Pois é. Penso que o espiritual já nos ronda, mesmo no mundo material em que vivemos.
Ser católico simpatizante é encontrar um lugar para preservar crenças espirituais num mundo material. Como filho de uma mãe sincrética que acreditava em elementos de várias religiões, do cristianismo ao umbandismo, fui criado dentro das crenças do cristianismo. No entanto, minha formação acadêmica foi rodeada pelo materialismo e ateísmo do curso de história, então eu sempre guardei em uma caixa interior a sete chaves algo da fé infantil, que vinha à tona nos velórios que fui ou nas igrejas que visitei, ou de forma enviesada, nos temas de minhas pesquisas. Em Crenças: nossa invenção mais extraordinária, o escritor Matthew Kneale tenta responder à pergunta: Por que as pessoas inventaram deuses? Aqui só quero saber por que, agora com 60 anos, penso na fé. Diferente dele, não se trata de ver a evolução das crenças religiosas, mas apenas refletir como evoluíram minhas próprias crenças. É que, como Knealle, também me fascino com a religião e também com outras formas de credo, como o político, o marxismo, o educativo, que teimam em imitar a religião e, por isso, revelam muito sobre nós.
Encomendar uma alma
Voltando à secretaria onde estava, eu sei que o termo “encomenda” na Igreja Católica é diferente do usado no mercado. Ele é uma prática que remonta à crença na existência do purgatório e na necessidade de orações e rezas para aliviar as penas das almas em sofrimento. Para mim, o purgatório já tem test drive na terra na exploração do trabalho feita pelo capitalismo, que, aliás, na minha visão, também cumpre o papel de simular para nós o inferno. Eu o vejo nas funcionárias de uma loja de departamentos que defende ideais de “sustentabilidade” e garante procurar o “bem-estar de seus colaboradores”, mas as condena a repetir a mesma atividade, a organizar as roupas bagunçadas pelos consumidores nos balcões dos mostruários num trabalho interminável. Arruma, alguém desarruma, ela volta para arrumar. Sem fim como o trabalho de Sísifo. É ou não o inferno? A diferença está no modo como definições simbólicas e crenças chegam até nós, são atualizadas, reelaboradas e o que fazemos delas.
Peço a missa para ir rezar pela minha tia, como fazia com minha mãe, para aliviar as penas de sua alma e para ajudá-la a chegar ao céu em segurança. Isso pode ser um alívio maior para mim do que para ela, mas não custa tentar. Eu devo isso a ela. A maioria de meus colegas de faculdade era ateia, ou se dizia, mas eu sempre me considerei católico não praticante: ser católico para mim é ter princípios morais inspirados na fé cristã, como praticar a caridade, defender a paz, viver com alegria e com paciência cada dia. Ser não praticante significa para mim não ter o hábito de ir à missa, ou só ir em determinados momentos. Este é um deles. Sou como aquele parente distante: ele é da família sim, mas só aparece de vez em quando, quando sente saudade.
Vou à missa e entro sozinho na igreja. A igreja é dos anos 50. Eu gosto de estar em um lugar que transcende o tempo. Como diz Michel Mafessoli em A nostalgia do sagrado (PUCPress, 2024), se o Brasil é o laboratório da pós-modernidade, com os valores próprios da sociedade contemporânea, também nele se encontra o paradoxo do sagrado que nos ensina “a apreender o Ser na sua inteireza” (p. 7). A ciência histórica me ensinou a ter certezas, mas como diz o Cardeal Lawrence, nem tudo são certezas. A fé, o sagrado, a visão mística, nos ensina a ver o infinito, nossas incertezas. O sagrado nos ajuda a viver melhor.
A paróquia dos meios de comunicação
A minha igreja é conhecida por ser a “Paróquia dos Meios de Comunicação”. Ela realiza transmissão das missas pelo rádio e pela internet, no YouTube, além de possuir páginas no Facebook e Instagram. “Isso sim é estar na pós-modernidade” – diria Michel Maffesoli. Para mim, as igrejas sempre foram lugares de contemplar o mundo, a mim mesmo e minhas crenças. Desde criança, gostava das igrejas, como fala Byung Chul – Han em Vida contemplativa (Vozes, 2023): “dado que percebemos a vida como trabalho e desempenho, compreendemos a inatividade como déficit que deve ser corrigido o mais rápido possível. Perdemos o sentido da inatividade, a qual não representa uma incapacidade, mas uma capacidade em seu próprio direito. A inatividade é uma forma reluzente da existência humana” (p. 10). Quando estou na igreja, não estou num tempo livre preso à lógica do trabalho, estou num tempo fora dele, estou num espaço onde posso estar inativo, não produzir nada, apenas ficar a sós com meus pensamentos, em silêncio. “O que eu quero para mim? Deus existe?”, eu me pergunto. “É o silenciar que dá profundidade à fala. Sem o silêncio, não há música, mas apenas barulho e ruído. Se perdemos a capacidade para a inatividade, igualamo-nos a uma máquina que deve apenas funcionar”, diz Han (p. 11-12). O barulho fica na rua e eu, criança, em silêncio na igreja, refletindo. Gosto disso até hoje.
Essas igrejas mundo afora querem nos apontar para uma relação do visível com o invisível, querem nos oferecer um tempo de contemplação não produtiva. Em meu curso de história, aprendemos sobre os erros do passado da igreja como instituição, mas o que Mafessoli propõe é compreender a riqueza do fenômeno religioso em estimular uma comunidade. Ela está em exorcizar a morte, como diz Vicenzo Susca em Tecnomagia (Sulina, 2024). Vivemos um presente sombrio, enredados nas regras de dominação do capital, nas redes digitais, inteligência artificial e algoritmos, vendo por todo o lado crises sanitárias, ambientais, exploração dos mais pobres e guerras sem precedentes. Por isso, a ideia de Paraíso ainda nos fascina. Entendo que a diferença da igreja atual em relação à do passado está em que esta pensa agora em três mundos: o primeiro, o de sua fundação, é o mundo espiritual, para o qual está preparada com seus ritos e liturgias. O segundo é o real, onde está organizada em instituições, atores e hierarquias, e o terceiro é o virtual, que a prepara para aumentar o rebanho nos tempos que passam com o auxílio da tecnologia. Entendo que ela tem tido sucesso nesse mundo. Entro e vejo o frenesi na igreja: na entrada, ao centro, jovens com o estandarte da cruz; ao lado, à esquerda, mais jovens preparando-se para cantar; do outro lado, à direita, outros jovens que terão o trabalho de auxiliar o pároco. É que me impressiona tantos jovens. No centro, nas bancadas, idosos como eu. Os jovens têm a leitura das encomendas como uma dessas atividades.
O começo da missa
A missa começa. Uma jovem, um pouco nervosa, como são os jovens quando fazem leitura em sala de aula, começa a ler as encomendas. Começa meu inferno. Não a ouço dizer o nome de minha tia. Pronto. Fico nervoso. É que aprendi com os colegas do serviço público que o que não existe nos autos, o que não está escrito, não existe. Já reparou como a maior parte da imaginação contemporânea sobre o céu também é a de uma imensa burocracia? No seriado Radiante, Han Jim-min (interpretada por Kim Hie-já) vai para o céu. Ali, para chegar ao reino celeste, ela precisa passar pelas filas similares a de um aeroporto, pelo detector de metais similar aos dos bancos, onde é revista por um funcionário, que verifica se ela não está levando algo de suas vidas terrenas. Isso é muito engraçado no seriado, pois eu não saberia que livro iria querer levar escondido para o céu, se ele existir e que espero, mas provavelmente seria barrado. Depois seguem-se as salas onde ela é direcionada para rever sua vida, onde vê se valeu a pena ou não, para salas para tratar as feridas que levou desta vida, e por aí vai. Muito bonitinho e engraçado, mas, claro, dar uma visão imaginária da organização celeste similar àquela visão que temos da coisa – isso é pedagogia – que, no meu caso, é a burocracia.
Saio da missa e vou à secretaria. “Eu acho que ela não disse o nome de minha tia.” A secretária, como boa burocrata, apesar da idade, me questiona: “Qual o nome, quando você veio?” E a principal: “Foi comigo que você falou?”. Eu fui burocrata, mas tive o privilégio de ser professor na função pública. Eu sabia que estava diante de uma profissional especializada em “tirar o seu da reta”, como se dizia. Ela diz: “Essas meninas nem sabem falar direito”. Eu digo: “É, pode ser, mas elas têm de adquirir experiência assim, não?”, como se a desculpasse por isso. Para mim, não era problema se disse o nome nervosa ou não, mas se disse. Pergunto se pode conferir só se o nome da minha tia está na papelada. Ela procura, vai aos arquivos, imprime. Me mostra. Mas não me deixa pegar a folha. Está. Alívio. “Não, o papel fica”, ela diz, típico daquele que não quer criar provas contra si mesmo. ”Não se preocupe, o padre fala depois.” Eu fico satisfeito e volto para meu lugar.
Penso na comparação e acho graça. É uma encomenda, e qualquer encomenda, como na Amazon, nos preocupamos com a burocracia. É assim neste mundo. Você pode perder seu esforço e pelo qual se empenhou nas… Encomendas. Não é assim no capitalismo, você pede por algo e não chega, não vem? Entendo que Ele deve estar vendo tudo, já que, é onisciente e onipresente. Mas é melhor me certificar.
Sobre o padre
Eu o havia visto, o padre, na entrada da igreja no dia em que fui fazer a encomendação. Eu o observei. Ele tem confiança no olhar. De sobrenome europeu, provavelmente germânico, é alto e claro. Ele observa a igreja e conhece a todos à sua volta, que falam com ele. Ele é o centro daquela instituição como o Papa Francisco é da igreja. Eu só digo “Bom dia”, mas a postura é inconfundível. Ele me observa como se pensasse: “Esse é novo por aqui”. Naquela paróquia, ele é o líder. Dias depois, já na missa, o público é diferente, é a comunidade. Além dos jovens, vejo vários aposentados, eu entre eles. Há pessoas sozinhas como eu, professando sua fé. Vejo um dos proprietários de uma loja de produtos naturais; vejo um pai cuidando de uma criança chorosa – seria um batismo, em seguida? Vejo um senhor que, como eu, observa a igreja ao redor. Ele parece, como eu, ter certa restrição com tanto alvoroço inicial, com tanto barulho – apesar de a missa ainda não ter começado. É provável que sejamos da mesma geração, vivenciamos a igreja como um lugar de silêncio e oração e não o pátio de recreio de uma escola. Vejo-o consternado e ajoelhado por muito tempo, olhando ao redor, e provavelmente ele, como eu, é familiar de um dos três que está na relação que vi de missa de sétimo dia.
Olho a arquitetura da igreja. Ela ainda me fascina tanto quanto quando era criança. Eu ia à igreja do centro e via o telhado ilustrado como se fosse um camponês medieval impressionado com o espaço da sua igreja central. No passado, obras suntuosas que levavam séculos para serem construídas; hoje, com os avanços da construção, as obras são construídas mais rapidamente, mas menos ricas em detalhes e com a mesma arquitetura racional que caracteriza nossos conjuntos habitacionais. As igrejas do passado, especialmente as coloniais, não evocam símbolos; as atuais evocam funções. Ainda assim, há o que admirar nessa igreja: os vitrais não perderam ainda sua função. Estão lá, cinco de cada lado, e na fachada do prédio. Mas é noite e não é possível ver o efeito cintilante que produzem durante o dia, como eu via quando ia à igreja quando criança com minha mãe e que me inspirava o divino que nunca esqueci. Lembro das leituras na faculdade da obra de Georges Duby, “No tempo das Catedrais” (Estampa, 1976), em que o autor fala da importância da luz na arquitetura gótica para a produção da sensação de transcendência. É assim aqui.
“O que mais mudou?”, me pergunto. Faz muito tempo que não venho à igreja, daí o estranhamento. Eu mal baixo o olhar e descubro. Há afixado na bancada onde estou, outra lembrança do mundo em que vivemos. Eu vejo um código QR para doações. Quando eu ia à missa na infância, uma sacolinha ia de mão em mão, onde cada fiel colocava uns trocados. Eu via que minha mãe às vezes dava dinheiro, o que era difícil para nós que éramos pobres, outras vezes não dava, quando então ela ficava triste. Nesse mundo, você só se sente participando dele pagando. Adiante, o padre justifica, num momento do discurso, a existência do dízimo: “é para o crente participar da obra do Senhor”. Eu entendo hoje que instituições, nos tempos atuais, têm seus custos, seus programas de caridade, e isso importa, mas como criança eu ficava triste por ver que minha mãe não podia contribuir. Espero que sua participação e a minha tenham sido valorizadas, como a presença de meus alunos em sala de aula. Eu acredito que, depois, sempre encontrei na própria vida formas de seguir os ideais cristãos, a solidariedade com os mais pobres. Espero que isso conte.
A sedução pelas cantigas
Eu ouço a música deste lugar. A igreja está fazendo um grande esforço para aumentar seu rebanho. A música é dirigida a eles, os jovens. A igreja sabe que eles, porque têm a vida toda pela frente, são o público preferencial, e eu sabia que também, para outra igreja, a da política, a regra era a mesma e por isso criei a ação educativa no serviço público onde trabalhei para os jovens. Eu era chamado de “o professor”. Padres são como professores, têm encontros com os jovens para formação religiosa, como eu tinha os meus para formação cidadã. De uma forma, sempre é disso que se trata, da ampliação do rebanho. O dele, do Senhor, o meu, o dos que lutam por seus direitos num mundo desigual. Mas de música, o que eu gostava, já na adolescência, quando conheci os clássicos, eram de outro tipo. De Bach, a Paixão de São Mateus; de Haendel, O Messias, com seu, claro, Aleluia e Beethoven, A missa solene, ainda que sempre tenha considerado Ode à Alegria, da Nona Sinfonia, a que possui, no poema, exatamente todos os elementos cristãos que valorizo: a de irmandade humana baseada na alegria, a ideia de fraternidade humana e a esperança de um mundo melhor. Por isso, ainda que a música gospel seja uma opção “para os jovens atuais”, para mim os clássicos é que encarnam o verdadeiro espírito da fé. Diferença de geração, enfim. Gosto é gosto e não se discute, diz o provérbio.
Lembro que, quando subi as escadas antes da missa iniciar, já havia três meninas esperando com a publicação O Dia do Senhor, da Arquidiocese de Porto Alegre. É o folheto litúrgico oficial para a celebração das missas e existe desde 1971. Eu me lembro dele da infância, quando ia à missa com minha mãe, com suas reflexões sobre o tempo litúrgico, cantos, textos bíblicos. Eu, quando estudei em cursinhos, nas palestras de professores como Voltaire Schilling, recebia também os textos que produziam e, quando comecei a dar aulas, também produzia textos para meus alunos. Em todas estas situações, trata-se de guiar o rebanho. Tenho meu folheto em mãos para iniciar a missa, mas, é claro, ele pode ser antecipado pelas redes sociais. Dou-me conta de que em muitas igrejas nem sempre seguem o folheto. Dou um sorriso, eu gosto dessa forma de resistência ao status quo, mesmo o eclesiástico. Não é o caso da igreja em que estou, que segue rigidamente o que diz o folheto. Acho bom isso, pois não me perco, mas acho ruim, porque, por outro lado, não sou surpreendido por um padre mais revolucionário.
Como se sabe, a missa é organizada em quatro momentos. Eles são Ritos Iniciais, Liturgia da Palavra, Liturgia Eucarística e Ritos Finais. Cada etapa tem um significado específico que contribui para a experiência de fé e culto dos fiéis. Como a vida, tudo no mundo tem que ter início, meio e fim. Aqui também. Confesso meu estranhamento ao ver os fiéis abrindo os aplicativos de banco em seus celulares para a doação de dízimos. Penso: ”Meu Deus, será que até aqui não estou livre desse… inferno?” O ato penitencial fala da água a “ser aspergida sobre nós, recordando o nosso batismo”, ainda que eu, procurando na entrada a fonte de água benta, como fazia quando criança, não a encontre em lugar algum. Sem água benta e sem lugar para acender velas: sou como a criança do meme da Xuxa: meu interior grita “Que igreja é esta?” Que igreja é esta?”. “É a de nossos tempos capitalistas dominados por temores de vírus e bactérias”, respondo.
A religião como modelo
A missa era para ser um lugar sagrado, mas ainda assim o profano a consegue invadir. Uma das vantagens das ciências sociais é defenderem que não há o que não possa ser visto como fato social. Estou na missa como historiador e como católico não praticante de crenças religiosas. Eu, ao longo do tempo, ampliei o sentido da religião para mim, exatamente como propõe Michel Maffesoli em O Tempo das Tribos (Forense, 1987): para ele, trata-se sempre do “divino social”. O religioso (de religião, religare) está por todo o lugar. Para além do racionalismo das ciências sociais, é a defesa da transcendência na vida cotidiana através das comunidades emocionais que criamos, seja a família, grupo de amigos, grupos de trabalho, enfim. “Este processo é causa e efeito do laço religioso, isto é, da partilha da paixão. Na verdade, a religião compreendida dessa forma é a matriz de toda vida social” (p. 63). Essa concepção de mundo foi muito importante para que eu conciliasse em meu íntimo fé e razão, fez sobreviver em minha prática profissional os elementos herdados da religiosidade infantil. A mesma fé que fazia eu acreditar em Deus servia para acreditar e defender um mundo melhor. Se acredito em Deus? Acredito em algo superior a nós, e isso de alguma forma me diz que sou religioso. É isso que todas as pessoas e culturas fazem, não? A fé, como a entendo, começa na crença em algo superior que se dilui na vida como elemento da relação entre pessoas, integrante da coletividade, o que me fascina porque permite traçar relações entre elas e a igreja, que ainda permanecem através dos tempos.
Dias depois, olho novamente a gravação pelo Youtube da missa e tiro a dúvida. A culpa era minha, não ouvi a menina falar o nome de minha tia. Tanto temor por nada! Jovens são ansiosos: ela se balança para o lado e para o outro, a câmara que a grava foi afixada logo atrás da cruz, nos lembrando diretamente de Cristo. Uma mulher ajeita o cabelo loiro, pois é preciso estar bem para ser visto por Ele, como é pela sociedade. A menina que auxilia pede que todos fiquem de pé para receber a “Equipe de Celebração”. Eles se posicionam em seus lugares. No final, é o padre que pede que todos fiquem de pé para o encerramento.
Um mal estar
Durante a missa, no momento em que o padre recita passagens do evangelho de João que tratam da fé na crença da ressurreição a partir do exemplo de Tomé, que precisava “ver para acreditar”, ele dá dois exemplos sobre o sentido de ressuscitar que me perturbam. Diz o pároco: “Sempre digo que no tempo em que havia cheque, se eu tinha cheque, eu continuava sem um real no bolso; para que eu pudesse usá-lo, eu tinha de ir ao banco para descontá-lo e então usar esse dinheiro; Jesus ressuscitou: eu tenho um cheque. Mas não significa nada na minha vida. Quando eu desconto o cheque, agora sim eu participo da ressurreição de Jesus. Pelo cheque, Deus ressuscitou. Acreditar é descontar o cheque. Outro exemplo é o que aconteceu em 2001, quando uma pessoa ganhou na mega-sena da virada, mas não foi buscar o dinheiro. Ganhar na Mega Sena é a ressurreição de Jesus; buscar o dinheiro da Mega Sena é acreditar na ressurreição de Jesus. Se eu ganhar na Mega Sena e não buscar o dinheiro, não muda nada na minha vida. Crer na ressurreição é se considerar herdeiro da missão de Jesus”. Ele deixa a pergunta no ar: acreditamos na ressurreição?
Eu ouço atentamente e minha formação crítica do capital se revira no estômago. Eu sei que o padre faz a analogia para que seus fiéis entendam sua mensagem. O objetivo do pastor é sempre como o do professor, o de ser entendido por seus alunos. Eu lembro das discussões em sala de aula de didática que colocavam a questão de até onde podemos ir com nossas simplificações, nossas reduções, nossas analogias em relação ao objeto de nosso ensino. Assim, eu só posso imaginar a dificuldade do padre em explicar os textos sagrados, como a Bíblia, como eu tinha dificuldade de explicar outro texto sagrado, o Capital, de Marx, para meus alunos. Pois eles eram sagrados para cada um dos grupos de que eu participava, seja de estudantes que se formaram nos anos 80 na Universidade Federal, seja daqueles que tiveram acesso a fundamentos religiosos em seu ensino fundamental, como eu. Eu entendo perfeitamente a ideia da fé em um livro sagrado porque foi pelos livros que eu me salvei no mundo real. Se isto tem algum significado sagrado, é que superei as contradições de minhas origens; por isso entendo que os cristãos tenham fé na Bíblia, ainda que eu mesmo, como muitos, não tenha lido mais do que algumas passagens na vida inteira, exatamente pelas mesmas razões, de que todos precisamos correr pela vida para sobreviver.
Mas, de alguma forma, esse tema nunca saiu de meu horizonte. Espiritual aqui se opõe ao material, como subjetividade também. Eu sempre tive fascínio pelos temas da subjetividade, como alguém que procurasse nos livros de ciências humanas um pouco de seu lado espiritual. Nesse caminho, tornar-se crítico do capital e do neoliberalismo foi uma consequência natural: qual regime afasta o ser humano dos valores humanos ligados ao bem, como solidariedade, para nos ligar aos temas dos valores ligados ao mal, como o egoísmo? Quando ouvia a citação das passagens da Bíblia nas missas em que minha mãe me levava, era minha formação ética que estava ocorrendo e eu agradeço aos padres por isso. Em Valores (Rocco, 2000), o sociólogo italiano Francisco Alberoni nos fala que todos nós nos perguntamos o que é o bem e o que é o mal, o que é o certo a fazer, o que considerar vício ou virtude. “E queremos encontrar um porto seguro, uma motivação justa, um guia” (p. 5). As lições cristãs foram meu guia. Eu sempre deixei uma porta aberta para a religiosidade porque, mesmo em uma formação materialista como a minha, no curso de história, eu sabia que a crença religiosa cristã tinha o mérito de oferecer princípios morais que não mudam com o tempo. Escolher o que é digno importa. Isso eu devo também ao meu catecismo de formação.
O nosso pecado
O pecado original no contexto cristão é a condição imperfeita e em direção ao mal herdada de Adão e Eva que desobedeceram a Deus e comeram do fruto proibido. Por isso, a necessidade de redenção que a missa reforça em sua liturgia. Sempre entendi que o nosso pecado original é o capitalismo e que a salvação dele está justamente na capacidade de lutar contra a desigualdade. Eu me pergunto se, sem querer, o padre, ao usar o exemplo do cheque e da loteria, não reforça a imagem do capitalismo como um universo no qual estamos todos imersos e do qual não podemos fugir. Eu sei que a igreja já até excomungou comunistas, mas não há como negar que ambos acreditam em uma sociedade melhor, socialmente justa e de iguais. Diz Zizek em O Amor Impiedoso (ou sobre a crença) (Autêntica, 2012): “Ninguém realmente escapa à crença – traço que merece ser enfatizado especialmente nos dias de hoje, em nosso tempo supostamente sem Deus. Quer dizer, em nossa cultura secular, pós-tradicional, hedonística e oficialmente ateia, na qual ninguém está pronto a confessar publicamente sua crença, a estrutura subjacente à cena é tanto mais disseminada – todos nós, secretamente, cremos”. Eu entendo isso assim: a pergunta do padre, na luta pela defesa dos mais pobres, sim, me sinto um herdeiro de Jesus, ainda que isso me soe prepotente. O que fazer? Foi o padre que perguntou.
Coloco-me na contramão daqueles que creem no capitalismo como nossa salvação. A revolução científica, sabe-se hoje, foi incompleta exatamente por isso. Ela deixou de lado crenças, afetos e sentimentos, que só atrapalhavam pela racionalidade, e isto levou à criação do regime mais explorador de todos. Aceitamos de forma irrevogável doutrinas econômicas que aniquilam o homem como verdades. Ir às minhas primeiras missas na infância me colocou diante de uma estrutura que auxiliou a formar minha visão de mundo. Como diz Paul Valéry, em A política do Espírito, “toda estrutura social é fundada sobre a crença ou sobre a confiança. Pode-se dizer que o mundo social, o mundo jurídico, o mundo político são essencialmente míticos, mais potentes quanto mais ignoramos que eles vêm de nós, de nosso espírito”.
Ouço o discurso que diz que devemos ser herdeiros da missão de Jesus e olho para o lado e vejo que só nos reconhecemos como herdeiros da missão do capital. Esse novo Deus vence porque nos conquista por sua promessa do gozo liberado e individualismo exacerbado. O padre, ao contrário, diz que a crença na ressurreição nos transforma em direção à união fraterna. Ele aponta as características daqueles que creem na ressurreição: “unânimes no ensino dos apóstolos, na fração do pão, comunhão fraterna e nas orações.” É a lição central da catequese para a vida. Que fiz desta lição? Do ensino, eu estudei sobre o mundo para ajudar os outros a buscar um mundo melhor; da fração do pão sempre fui de me agregar, conviver com os amigos de trabalho numa comunhão fraterna. Se orei? Quando perdi minha mãe e durante a pandemia. Minha comunhão foi com a ideia de solidariedade, compromisso com a defesa dos mais pobres. Foi isso que vivi do religioso, penso. Em seguida, o padre diz: “Se eu vivo isso, eu acredito na ressurreição. E daí a ressurreição já começou a mudar a minha vida.”
A fé alimenta a esperança
Após os cantos e cerimônias, o padre encerra a missa com os “avisos gerais”. Essa é uma espécie de chamada de novela para o próximo capítulo. Ele reitera as atividades previstas pela igreja e que estão disponíveis nos aplicativos. Ao encerrar, ele desce do altar. Eu o vejo cumprimentar uma senhora idosa, recebe cumprimentos pelo discurso durante a missa, enquanto os demais ou cantam ou preparam o encerramento do lugar, o que se chama pós-produção. Ele conversa, distribui abraços e beijos aos mais fiéis. É como lembro de encerrar minhas aulas ou palestras nas escolas: sempre vem um aluno ou dois, às vezes mais, conversar sobre o tema abordado, agradecer ou perguntar alguma coisa. Descer do altar religioso ou do altar do ensino, isso sim é congraçar com o comum.
O divino não é somente divino por ser celestial, mas por também ser social. Na igreja, diz Michel Maffesoli, temos a força agregadora do divino social. “Poderíamos dizer “religião”, entendendo a palavra tal como é empregada para designar aquilo que nos une a uma comunidade. Trata-se menos de um conteúdo, que é da ordem da fé, do que de um continente, quer dizer, de algo que é a matriz comum, que serve de suporte para o ser/estar junto” (p. 56). A modernidade, pela lógica econômica que impera nela, privilegiou a individualização e produziu o desencantamento do mundo. A religião, ao contrário, quer encantá-lo, na força do pequeno grupo para restaurar sua eficácia simbólica, “o sentimento de que faz parte da comunhão invisível dos crentes”.
Eu gosto do ponto que Byung-Chul Han considera fundamental para justificar minha fé aos 60 anos. Em O Espírito da Esperança (Vozes, 2024), ele diz que “é inerente à esperança algo contemplativo. Ela se inclina para a frente e escuta. Sua receptividade a torna delicada, conferindo-lhe beleza e graciosidade. A esperança representa um movimento de busca. Nisso, ela também avança para o desconhecido, o não trilhado, o aberto, o que ainda não é, ultrapassando o sido, indo além do já existente. Ela desperta. Com frequência, precisa ser chamada, invocada. A esperança ativa é caracterizada por um comprometimento. Ter esperança significa “dar crédito à realidade”, crer nela, de modo a torná-la prenhe de futuro. A esperança representa uma íntima oração da alma, uma paixão que desperta diante da negatividade do desespero”.
Eu oro por minha tia, pois tenho esperança. Entendo que ter esperança é ter fé. No mundo dos likes, nos acostumamos a substituir nossos medos por consumo. A religião ainda quer nos dar elementos para enfrentar o medo. Ela fomenta nossas esperanças e o faz criando uma comunidade de destino (Maffesoli), estratégia diferente do capital que prefere nos isolar um do outro e manter as redes sociais como ilusão de comunidade. Somos mais sozinhos hoje do que no passado? Acredito que sim, graças à tecnologia. Padres, professores e políticos dominam as artes de espalhar esperança: a esperança dos primeiros é do que nos resta frente à finitude; dos segundos, de que o conhecimento nos ajudará no mundo; dos terceiros, que, com a revolução, podemos enfrentar os medos sociais que temos. Numa sociedade depressiva, somente a esperança salva. Então, por isso, ao menos para ouvir uma palavra de esperança, ainda vale a pena ir a uma missa e preservar nossa fé.
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