Aqui no Brasil costumamos dizer que um gato tem sete vidas. Nos Estados Unidos, são nove.
Não sei porque a expectativas de vidas dos felinos é maior acima da linha do Equador, mas a minha prática clínica tem comprovado que nós somos muitos parecidos com esses bichanos: nós também podemos viver muitas vidas.
E muitas mortes.
Morremos quando saímos da infância. Morremos quando os pais se separaram. Morremos quando deixamos de brincar com os amigos do bairro. Morremos quando trocamos a camiseta de banda pela camisa social. Morremos quando um animal de estimação nos deixa. Quando um amor nos deixa. Quando um familiar nos deixa. Morremos quando deixamos alguém. Morremos quando um dia esquecemos de ligar para um amigo – e nunca mais lembramos. Morremos quando nos damos conta que aproveitamos pouco a nossa adolescência. A nossa juventude.
Morremos quando esquecemos o nome da primeira professora do colégio. Morremos quando não reconhecemos a primeira professora do colégio na fila do caixa. Morremos quando descobrimos que nosso amigo de infância virou uma pessoa horrível. Morremos quando nós viramos uma pessoa horrível. Morremos quando o nosso médico diz que é hora de fazermos ecografia das artérias coronárias. Morremos quando temos que reduzir a gordura da comida. O açúcar. O sal. O álcool. O glúten. A lactose.
Morremos quando encontramos um brinquedo de infância jogado no fundo de um armário.
Mas, como os gatos, nós também revivemos.
Revivemos quando terminamos de escrever o nosso TCC. Revivemos quando damos ponto final à dissertação. À tese. Ao relatório. Ao capítulo. Ao artigo. Ao livro. À lista de compras. Revivemos quando somos lidos. Revivemos quando você, leitor, lê este texto.
Revivemos quando encontramos um novo amor. Revivemos quando nos apaixonamos. Revivemos quando casamos. Revivemos quando nasce um filho. Quando adotamos um cachorro. Quando mandamos aquela mensagem para um amigo distante. Quando somos respondidos por este amigo distante.
Revivemos no momento exato em que a pessoa em quem estamos abraçados acorda pela manhã.
Um gato morre e revive sete ou nove vezes. Nós, os bípedes, viemos ao mundo com o privilégio da incerteza. Não sabemos quantas vezes morreremos e reviveremos.
Talvez essa certeza de que a gente morre tantas e tantas vezes, para depois renascer, seja o mais perto que eu consigo chegar de uma crença religiosa. A forma mais simples que eu criei para entender o espiritismo da minha mãe e o catolicismo do meu pai. Realmente não acredito em vida após a morte ou na imortalidade da alma, mas me contento em saber que há muitas formas de morrer e renascer aqui mesmo, na indiferente banalidade do mundo das coisas.
Por isso mesmo volta e meia me pego pensando, assim que fecho a porta depois de um paciente de longa data sair, sobre quem era esta pessoa quando veio buscar atendimento há dois, três, cinco, dez anos. Esta mulher que hoje é chef de cozinha e que me procurou há tanto tempo para me falar de suas crises de bulimia. Este recém-formado que reprovava no vestibular como forma de dizer “não” à escolha profissional que a sua família fazia por ele. Este senhor que, na sua primeira sessão, contou pela primeira vez para alguém um arrependimento da juventude. Esta moça que conseguiu se insurgir contra a violência silenciosa que sofria de seu, agora ex, marido.
O mais curioso é que, por serem pacientes antigos, muitos deles também foram testemunhas, talvez até sem saber, das várias versões de terapeuta que eu mesmo fui.
Há algo no trabalho de um psicanalista que se aproxima muito da cumplicidade com um suicídio subjetivo. Afinal, para podermos fazer mudanças na vida, é necessário que permitamos que uma imagem de nós mesmos morra. Mudar implica despedir-se um reflexo no espelho. E fazer o luto dessa vida que se deixa para trás.
Mas, como todo luto, sempre resta algo do que foi perdido. Para alguns, as mudanças, as pequenas mortes, não são escolhas, mas imposições da vida: por isso, podem ficar ressentidos com tudo aquilo que eram ou, pior, com o que poderiam ter sido. Para outros, entretanto, matar uma versão de si é uma forma de resgate, a saída possível de um cativeiro muitas vezes autoimposto. Para estes, o que resta do luto é o júbilo de ter sido corajoso.
É preciso muita coragem para matar-se em vida. E pode ser tranquilizador saber que este suicídio não precisa ser um ato solitário, mas que podemos contar com alguns à nossa volta para nos receber “do outro lado” de um mundo que nunca deixamos.
Talvez seja nisso, e só nisso, que um psicanalista se pareça com um grande amigo: no papel de testemunha íntima das inúmeras mortes e renascimentos de alguém.
Com sorte, desta queda em direção ao novo nós cairemos em pé e celebraremos com as pessoas queridas. Se não for, se o impacto for duro demais, talvez seja preciso falar disso com alguém.
Ou podemos também adotar um gato.
Foto da Capa: Anton Atanasov / Pexels