Demorei a ser mãe. Não por falta de desejo, mas porque custei a engravidar. Isso me deu tempo de pensar bem no que significaria, para mim, botar um filho no mundo. Nesse período de reflexão, decidi que uma das coisas que eu mais queria fazer seria observar como esse novo ser iria enxergar o mundo. Por isso, desde o começo, prestei intensa atenção nas coisas que a minha Lina, hoje com 10 anos de idade, fazia e dizia.
Depois de algumas semanas pesadas, com perdas e notícias tristes e momentos turbulentos na política, trago algumas lembranças de tiradas divertidas da pequena com três anos. Tenho certeza de que todo leitor já presenciou diálogos e falas bem parecidas com suas crianças, especialmente aqueles “erros” que não ousamos corrigir.
Minha tese: a graça das falas não é mérito nosso ou de uma mente privilegiada dos nossos rebentos, mas do fato de que elas estão vendo o mundo pela primeira vez. A nós, cabe ouvi-las e, defendo, anotá-las o mais rapidamente possível, porque elas desaparecem da lembrança mais rápido do que a infância.
Bons modos
Lina e a prima terminam de jantar e começam a sair da mesa. A dinda pergunta:
– Quando termina de comer, como se diz?
A prima:
– Com licença.
Lina:
– Quero mais.
Ora…
Lina decide ficar acordada esperando o pai, que tinha compromisso de trabalho e chegou mais tarde. Quase 23h, com ela ainda me enrolando para dormir, argumento:
– Filha, sabe o que todos os teus amiguinhos estão fazendo a esta hora?
– Dumindo.
– Isso mesmo. E o que a senhora está fazendo?
– Não dumindo.
Ninando Lina
Hora de dormir, a guriazinha fecha os olhos, me abraça, e eu pergunto:
– Quer musiquinha?
– Quero.
Começo então a murmurar a melodia do Acalanto de Brahms, que minha mãe entoava pra mim e que canto pra Lina desde a barriga. Quando a canção parece já ter virado um mantra…
– Zá deu?
– Oi, filha?
– Zá deu a música?
– Por quê?
– Tá muito baiuio. E eu quero naná.
Que estranho
Sinaleira vermelha, um morador de rua usa um método original para pedir esmola. Ele se posta na janela do motorista mostrando uma moeda de 10 centavos com uma das mãos e outra de 50 centavos com a outra enquanto faz um discurso ininteligível. Faz isso nos dois carros à minha frente. Então faz ao meu lado, que respondo sacudindo a cabeça negativamente com um meio sorriso sem graça. Ele está acabando de fazer sua performance no carro ao lado quando ouço uma vozinha intrigada no banco de trás perguntar:
– Por que ninguém quer o dinheiro dele?
Esses titio…
Em uma noite de lua nova, Lina olha pro céu, olha pro céu e constata:
– Manhê, acho que os titio tiraro a lua!
Autossuficiência
Lina vendo um desenho animado e tapando os olhos quando aparece alguma coisa assustadora.
– Tá com medo, pequena?
Ainda tapando os olhos, ela responde:
– Mãe, deixa que eu resolve os meus pobema.
Dã
– Lina, quem te ama?
– Tu e tu – ela diz para mim e o pai.
– E tu ama quem?
Fazendo tom de obviedade:
– A vó.
Dando a real
Eu tentando conter a perua latente na pequena enquanto calço os sapatos de saltos altíssimos na Barbie:
– Bá. Como é que ela anda com esses sapatos tão altos?
– Ela não anda, mãe. Ela é brinquedo!
Saúde, James Bond!
Márcio apresentou à Lina seu primeiro 007 (um do Roger Moore). A guriazinha viu até o final (comentando e perguntando o tempo todo) e adorou. No dia seguinte, se dá o seguinte diálogo.
– Lina, vamos ver aquele filme do espião de novo?
– Vamos! Mãe, tu quer com a gente o filme do moço que espirra, o espirrão?
Dando a real 2
– O que tu tá pintando na camiseta do papai?
– Uma boboleta.
– Bah, e essa borboleta vai sair voando?
– Não, mãe. Ela é de tinta.
Certeza!
Mãe, eu tenho muita ceteza. Eu tenho cetezuta.
Porque sim
Lina hoje passou muito tempo no ar condicionado e teve um pequeno sangramento no nariz.
– Ô, mãe, por que o sangue é vermelho?
– Tu não acha bonito o sangue ser vermelho?
– Eu acho esquisito. Devia ser peto ou banco, né?
– Por quê?
– Porque eu queria.
Ser ou não ser?
Lina assiste a um episódio dos Detetives do Prédio Azul e vem me contar:
– Mãe, tu viu, a Mila virou um rato. Um Hamlet!
– Um o quê, Lina?
– Um Hamlet! Um ratinho bonitinho.
Mais certeza ainda
Eu tenho ceteza abilissuta!
Um purê muito louco
– Lina, tu ajudou a vovó a fazer o almoço?
– Ajudei.
– O que tu fez?
– Eu ajudei a pirar o pirê.
Vai logo, leite
Sempre atenta aos ingredientes do que ajuda a preparar na cozinha, Lina diz o que foi no doce delicioso feito pela vovó Alair com o precioso auxílio dela para a sexta santa:
– Chocolate, morango e leite começado.
Um novo Caetano
Lina sai da escola cantando “Por que não, por que não…”, se espanta quando canto junto “Caminhando contra o vento, Sem lenço, sem documento, No sol de quase dezembro, Eu vou”… Daí pergunto:
– Foi o profe Andrei que ensinou?
– Sim! É do Caetano Violoso.
Realeza trans
Lina quase dormindo.
– Mãe, por que eu nasci menina?
Ai meu Deus…
– Ah, acho que quando tu decidiu nascer tu escolheu ser a menina da mamãe e do papai.
Voz muito triste.
– Mas eu não queria nascer menina.
Momento de pânico materno em relação ao que vinha por aí e preparando mil respostas mentalmente. Não é cedo demais pra essas questões de gênero? Ainda assim, lancei a pergunta natural.
– O que tu queria ter nascido?
Um choramingo sofrido:
– Rainha.