Mario Ferreira de Medeiros nasceu em 20 de setembro de 1918 e faleceu em 26 de dezembro de 2021, aos 103 anos, em João Pessoa, onde residia. Era pracinha, ex-combatente da Força Expedicionária Brasileira, serviu na Segunda Guerra e formou-se como agrimensor, tendo se aposentado no Departamento Nacional de Estradas de Rodagem – DNER. Casou-se com Maria Alziva Ferreira, o casal teve 10 filhos.
Conheci Seu Mario, pai de minha amiga Maria Amazile. Estive com ele numa visita à sua casa, levado pela filha, numa tarde quente, no intervalo de um congresso. Estava sentado numa cadeira no pátio. Olhou-me meio desconfiado, a surdez aplacada pelo aparelho auditivo serviu de lenitivo para minha impressão de que não fora muito com a minha conversa.
Deveria ter me preparado melhor, ter lido seus livros, com boas histórias da saga familiar e do sertão paraibano. Teria muitos assuntos para conversar com ele. Sempre leu muito e, após a aposentadoria, começou a escrever mais e, sem receio da modernidade, passou a alimentar um blog. Numa das suas criações, entremeou aventuras de sua juventude envolvendo os netos como personagens, um exercício ficcional que representa o valor mágico da literatura, a possibilidade de viajarmos no tempo e no espaço.
Em Santa Luzia do Sabugi, sua cidade de fato e coração, ele continua sendo considerado um patrimônio da região. Na assim conhecida Veneza Paraibana, rodeada por providenciais açudes cuja genealogia também conhecia bem, Mario Ferreira exercia um natural atributo de conselheiro, por seu conhecimento, erudição e bom senso. Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Luzia, ativa agremiação, detinha a Cadeira nº 10. Mesmo tendo ido morar na capital, retornava sempre que podia e manteve uma relação estreita e afetiva.
De tudo, ainda o admirava pelo senso ecológico e aí uma peculiaridade. Seu Mario criava galinhas de pescoço pelado. É o único ser vivente que vi ter essa preocupação. Também conhecida como Turken, a espécie é natural da Transilvânia. Fico imaginando se esse pescoço desprovido de penas tem algo a ver com a história do Conde Drácula. A superfície já limpa facilitaria a mordida. Acho que o Seu Mario iria rir dessa minha observação.
Se alguém não criar, correm risco de extinção, argumentava ele. No momento em que o país arde com as queimadas e a previsão de extinção de muitas espécies da nossa fauna é dramaticamente real, oxalá esse traço da herança genética de Noé se manifeste e nos conscientize, se é que há tempo para mudar essa realidade.
Mas de todas as histórias que guardo do Seu Mario, o que motiva essa crônica em sua homenagem é a que segue.
Seu Mario Ferreira de Medeiros tinha um sítio em Santa Luzia, conhecido por Tapuyo. O nome faz referência aos povos originários. Na região, como em todo o país, eles também sofreram com os colonizadores e, em alguns casos, deixaram descendentes comuns em muitas genealogias. Não são poucas as histórias de famílias com uma bisavó indígena “pega a dente de cachorro”, uma expressão local que demonstra raízes de uma violência da qual ainda não nos livramos.
A relação do Seu Mario com o sítio sempre foi de amor genuíno. Uma espécie de oásis, onde sempre quis cultivar algodão. Imaginava a plantação desabrochando em nuvens brancas como a neve. Quando finalmente conseguiu, foi uma outra nuvem, de gafanhotos, que acabou com o seu sonho. Ano a ano, esperava, com paciência, que a chuva enchesse o riacho, para que fosse possível plantar feijão. Uma terra branca e rochas de arenito. Seca atrás de seca. Quando raramente a chuva aparece, o verde renasce da noite para o dia, como um milagre naquele paraíso. Por um tempo lá criou gado.
Quando os filhos eram crianças, o Tapuyo, emoldurado pela beleza da Serra da Tubiba, servia para palco de aventuras, por vezes atemorizantes. A casa do sítio não tinha forro, apenas caibros e telhas. Nos caibros, não raro dormiam cobras. Clima de deserto, calor intenso durante o dia, frio à noite. Ventos que vêm da serra e que hoje alimentam cataventos. Nas palavras de Seu Mario: o ditado adaptou-se ao tempo, antes “quem plantava ventos, colhia tempestades, hoje colhe energia eólica”.
Pouco antes de falecer, Seu Mario quis despedir-se do sítio. Três horas e meia de carro de João Pessoa. A família, com alguma preocupação, preparou a viagem.
Seu Mario, prestes a completar seus 103 anos, dormiu por vinte e quatro horas ao chegar ao Tapuyo. No outro dia, de cadeira de rodas, pediu para passear no pátio. Ao chegar em frente à árvore, aquela que sempre deu sombra, manifestou o desejo de urinar no seu tronco. A filha argumentou que não, que ele estava de fraldas, poderia fazer uso delas e depois ela o levaria ao banheiro. Ele não aceitou. Teimou e, com uma força que não imaginavam que ainda tivesse, levantou-se da cadeira e urinou na árvore.
No retorno a João Pessoa, parecia outro homem. Conversou com todos. Fez planos. Pediu que suas cinzas fossem deixadas levar pelos ventos da Tubiba. Agora ele estava pronto para partir.
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