Há alguns anos, assisti a uma novela cujo enredo girava em torno da literatura, Bom Sucesso, se não me falha a memória. (Sim, sou noveleira. Não me julguem!) O protagonista era interpretado por Antônio Fagundes, um dos meus atores preferidos. Ele dava vida a um editor terminalmente doente, dono de uma pequena editora à beira da falência. Graças a esse cenário, os livros atravessaram toda a narrativa da novela: personagens comentavam clássicos da literatura enquanto reviviam cenas deles de forma quase onírica.
Gostei da novela por dois motivos. Primeiro, pela reflexão sensível sobre o fim da vida diante de uma doença terminal — algo que enfrentei no ano seguinte com meu pai. Segundo, pelo despertar do interesse por obras literárias que eu ainda não conhecia. Foi ali que ouvi falar, pela primeira vez com atenção, de Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle.
Na trama, um funcionário da editora era fascinado pelo famoso detetive, e trechos de suas aventuras eram encenados com frequência. A célebre frase “Elementar, meu caro Watson” surgia sempre, acompanhada de embates com uma colega feminista que questionava a visão de mundo da época em que os contos foram escritos.
Holmes é o detetive da lógica implacável e do olhar clínico. Apareceu pela primeira vez em Um Estudo em Vermelho (1887). Morador do número 221B da Baker Street, em Londres, divide protagonismo com o médico e ex-soldado Dr. John Watson — seu contraponto emocional. Watson é o elo com o leitor; Holmes, a razão pura. Juntos, percorrem os bastidores da Era Vitoriana e os abismos sociais de uma Londres enevoada. Holmes, com seu inseparável cachimbo, tornou-se arquétipo: reinterpretado inúmeras vezes pela literatura, cinema, televisão e quadrinhos.
Ainda hoje, sua figura enigmática inspira novos autores. É o caso do romance Sherlock Holmes dos Pampas, de Athos Ronaldo Miralha da Cunha, recém-lançado pela Editora Bestiário. Na trama, conhecemos Santiago Sardinha, um investigador da polícia que, ao ser chamado para reconhecer o corpo de uma jovem assassinada na saída para Viamão, mergulha numa rede de crimes que ameaçam sua vida e a de quem está ao seu redor.
Os assassinatos se estendem entre Porto Alegre e Buenos Aires, enquanto Sardinha — apelidado de “Sherlock Holmes dos Pampas” — se envolve com uma mulher misteriosa e proibida. Ambientado no cenário político dos anos da Lava Jato, o livro entrelaça investigação, crítica social e corrupção. Sardinha enfrenta o desafio de desmantelar uma rede que liga o tráfico de pedras preciosas a figuras poderosas da política nacional.
O que mais me chamou atenção, porém, foi como Athos Miralha conseguiu trazer Holmes para o sul do Brasil sem perder a essência do personagem. Sardinha é sarcástico, meticuloso, às vezes até insuportavelmente racional. Não é apenas um jogo de pistas e enigmas: Sherlock Holmes dos Pampas também nos convida a pensar sobre o país em que vivemos, as injustiças que atravessam as fronteiras da lei e o quanto a verdade pode ser manipulada por interesses maiores.
Terminei a leitura com a mesma sensação de quando vi Bom Sucesso: a de que a literatura, seja na tevê ou nas páginas de um romance, tem esse poder mágico de abrir portas, acender curiosidades e lançar luz sobre as sombras do mundo — e das nossas próprias histórias. Em Sherlock Holmes dos Pampas, Athos Miralha faz exatamente isso: mergulha no escuro da política, dos crimes e das paixões clandestinas para mostrar que, mesmo longe da névoa londrina, o faro pela verdade continua indispensável. Sardinha não é apenas uma versão sul-americana de Holmes — ele é um espelho de um Brasil complexo, onde desvendar um crime exige muito mais do que lógica: exige coragem para encarar o que se prefere esconder.
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Foto da capa: Athos Ronaldo Miralha da Cunha / Divulgação