Sim, leitor, você leu certo o título desta coluna. Você tem o famoso transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Eu também, aliás. O seu vizinho? Também tem. Seu filho? Provavelmente. Sabe por quê? Porque você é absolutamente normal.
Eu explico, me acompanha.
Hoje em dia
Seja sincero: qual a primeira coisa que você faz quando acorda pela manhã?
Se você for como a maioria das pessoas, você acorda e o seu braço já sabe a distância exata que tem que percorrer para chegar até o celular, que está carregando na mesa de cabeceira. Veja bem, leitor, eu não me eximo da minha parte nisso: eu também faço o mesmo. Abro os olhos e toco naquela tela adormecida, despertando o aparelho de seu coma noturno induzido.
O que procuramos entre aqueles milhares de pixels, logo tão cedo?
Da minha parte, leio rapidamente as notificações dos aplicativos de notícias, para saber se o mundo ainda está aí – e torcendo um pouco para que eu tenha acordado em um planeta um tanto diferente. Sim, o mundo segue ali. Logo depois eu vejo se há alguma demanda urgente no WhatsApp. Algum paciente pedindo um horário extra? Algum familiar precisando de algo? Alguma decisão que precisa ser tomada nas primeiras horas da manhã? Não? Ótimo. Agora posso me ocupar da vida alheia: corro rapidamente os feeds do Instagram e do Twitter, só para, minutos depois, me arrepender e jurar pra mim mesmo que vou apagar estes aplicativos do celular.
Neste meio tempo, já estou levando a cachorra para passear e organizando mentalmente o dia. Qual o intervalo de almoço de hoje? Tenho alguma reunião à noite? Não posso esquecer de tirar o lixo.
Na manhã seguinte, tudo igual.
Em outros tempos
Agora, caro leitor, imagine-se acordando no começo dos anos 90.
Você abre os olhos, provavelmente acordado pelo alarme do rádio-relógio ou do despertador. Se você não assistiu ao jogo de futebol do seu time, ou não viu o noticiário no dia anterior na televisão, você talvez até esteja um tanto ansioso para pegar o jornal debaixo da porta.
Para ficar informado das últimas – ou das penúltimas, tendo em visto o tempo para impressão e entrega do jornal – notícias, você precisa dedicar um tempo à leitura, talvez enquanto toma um café passado ou espera o leite ferver. Nos anos 90, nós vivíamos sempre um dia atrasados com relação ao mundo: ficávamos estupefatos com notícias antigas. Estávamos em descompasso com a realidade. Se o mundo acabasse, sequer teríamos tido tempo de lamentar sua morte precoce.
Seguindo. Se você estiver curioso por saber como anda um amigo ou familiar, você vai deixar uma nota mental para telefonar para esta pessoa. Ou vai anotar um recado na sua agenda de papel. Lembra? Papel e caneta? Se você for um dos privilegiados já com acesso à internet, você provavelmente viu seus e-mails após a meia-noite do dia anterior, para gastar apenas um pulso telefônico. Logo, realmente a melhor forma de se atualizar sobre a vida dos outros é por telefone, mesmo.
Você leva o cachorro para passear, talvez ouvindo algum CD no seu discman da Sony. Volta para casa, toma banho, escova os dentes e sai.
Na manhã seguinte, também tudo igual.
Percebe a diferença?
Tudo ao mesmo tempo agora
Antes de mais nada, deixo bem claro que estou longe de ser um nostálgico ou um entusiasta do passado. Aliás, tenho até mesmo certa repulsa aos discursos saudosistas. Por muitas vezes, quando olhamos excessivamente para o passado, deixamos de confrontar os problemas que o presente nos apresenta e, infelizmente, perdemos também contato com as novas vozes que podem fazer algo diferente.
A nostalgia é um óculos que embaça a visão de perto.
Dito isso, acho importante que não nos deixemos também tomar pela ideia de que aquilo que é novo é também necessariamente melhor.
O meu ponto neste texto é convidar o leitor a perceber o quanto a nossa relação com o tempo mudou nas últimas décadas. Se antes tínhamos acesso a um mundo mais lento e cadenciado, agora nos vemos frente a uma quantidade absurda de demandas que precisam ser respondidas de forma instantânea, geralmente de modo simultâneo.
Ficamos tão obcecados com esta obrigação de dar conta dos milhões de estímulos que inventamos o mito da “multitarefa”, como se fôssemos capazes de prestar atenção a vários contextos ao mesmo tempo. Não, ninguém é “multitarefa”. Quando tentamos atentar a diversos estímulos diferentes, a nossa atenção é particionada e, consequentemente, nós fazemos tudo pela metade ou de forma apressada.
A atenção, na verdade, é um recurso finito. Ou seja, temos uma quantidade limitada de atenção que pode ser dirigida ao mundo. Um exemplo bem prático: por acaso o leitor não sente necessidade de baixar o volume do rádio quando vai estacionar o carro? Imagino que sim. Também faço isso: quando sinto que preciso prestar atenção às manobras necessárias para fazer o carro caber naquela pequena vaga encontrada na rua, preciso baixar ou desligar a música que está tocando, ou me sinto atrapalhado. Quando fazemos isso, estamos retirando a atenção de um lugar e colocando em outro que requer mais cuidado. É menos danoso deixar de ouvir aquela música naquele momento do que porventura bater o nosso carro.
Somos todos hiperativos?
A rotina contemporânea nos demanda uma distribuição sobre-humana de atenção. Basta compararmos os dois cenários que propus acima e teremos uma ideia disso. Repare o leitor na quantidade de informação a que temos acesso logo ao acordar nos dias de hoje. Tudo isso vai consumindo o nosso estoque limitado de atenção e, mais ainda, nos convoca a estarmos o tempo todo em atividade: respondendo mensagens, nos atualizando das últimas notícias, dando conta dos e-mails.
Não somos nós que somos deficitários de atenção e hiperativos: é o mundo.
Vivemos como se tivéssemos que estacionar um caminhão cargueiro em uma vaga muito pequena enquanto uma trupe circense performa ao nosso lado.
Há que se ter cuidado em não fazer do sintoma social de uma época um transtorno individual. O risco maior é o de nos tornarmos todos indivíduos medicalizados para um suposto mal que, a bem da verdade, não é um desvio, mas uma adequação aos nossos tempos.