Em que pese as mudanças climáticas e as tragédias ambientais que hoje são uma realidade no Brasil e em diversos países do mundo viessem sendo avisadas por importantes cientistas e ecologistas, apelidados de “ecochatos”, e o Brasil tenha inclusive sediado no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, popularmente chamada de ECO-92, o meio ambiente brasileiro continuou sendo atacado incessantemente por grileiros, mineradores, fazendeiros, grupos econômicos relacionados a diversos setores.
E, para piorar a situação ambiental no nosso país, em que a fiscalização e a defesa do meio ambiente deixam muito a desejar, não raro surgem leis que visam facilitar o licenciamento ambiental e ainda mais o uso do meio ambiente e dos recursos naturais para projetos econômicos, turísticos ou urbanísticos, que obviamente são lesivos à natureza. Infelizmente, até que a constitucionalidade de tais leis seja objeto de numerosas ações judiciais, e que as controvérsias a respeito da constitucionalidade de tais normas sejam resolvidas pelo Supremo Tribunal Federal, muitos empreendimentos ou ações danosas ao meio ambiente podem ocorrer, ainda que não imediatamente. Os danos ambientais muitas vezes se protraem no tempo e podem ser transgeracionais e imensos.
Obviamente, tais danos ocorrem por uma conjunção de fatores de caráter inclusive global, e a mudança climática e seus efeitos desastrosos são uma realidade sentida em todo o planeta.
Apesar de tudo isso, em 09 de janeiro de 2020, a Lei 15.434, que instituiu o Código Estadual do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul, estado em que nasci e resido, que, como é cediço, sofreu enormemente com os eventos climáticos de 2024, que deixaram inundadas boa parte do seu território, um enorme número de mortos e desabrigados, e mataram diversos animais domésticos e selvagens.
Em razão dessa lei 15.434 e também da Lei 14.861 de 2016, do Estado do Rio Grande do Sul, a qual dispõe sobre a política estadual para florestas estaduais, o Procurador-Geral da República (PGR), Augusto Aras, ajuizou, no Supremo Tribunal Federal (STF), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6618, em que questiona a constitucionalidade de dispositivos das Leis estaduais 15.434/2020 e 14.961/2016 do Rio Grande do Sul.
De acordo com publicação do Boletim do STF EM FOCO de 2025 (Boletim), referente ao Direito Ambiental, essas leis gaúchas determinaram:
“(i) a instituição de novos tipos de licenciamento ambiental;
(ii) a contratação de pessoas físicas ou jurídicas capacitadas para as atividades de licenciamento ambiental, com a finalidade de auxiliar os órgãos ambientais com conhecimento técnico ou para dar vazão ao alto volume de demanda atípico;
(iii) a dispensa do licenciamento para atividades de silvicultura que tenham alto potencial poluidor, mas porte mínimo de território;
(iv) a alteração do momento das decisões em relação ao reassentamento de populações provocado pelo licenciamento ambiental; e
(v) a responsabilidade civil de agentes públicos no caso de erro grosseiro ou dolo.”.
Em razão disso, o PGR alegou que houve a “violação dos art. 5º, LIV, 23, VI e VII, 24, VI e VII e § 1º, e 225, caput — todos da Constituição Federal. Isso porque, para o autor, o:
i) art. 54, IV, V e VI, e §§ 1º, 3º, 4º, 8º e 9º, da Lei 15.434/2020, inovou indevidamente a disciplina do licenciamento ambiental, no que cuidou de criar e regulamentar novos tipos de licenças, em afronta às normas federais que versam sobre a matéria;
ii) art. 224 da Lei 15.434/2020 e o art. 14, § 1º, I, da Lei 14.961/2016 (preceito esse último que haverá de vigorar por conta do efeito repristinatório derivado do reconhecimento da nulidade do primeiro comando) estão em desacordo com a ordem jurídica, já que, em essência, endereçaram a certos empreendimentos verdadeira dispensa de licenciamento, contrariando a jurisprudência do STF sobre o tema;
iii) art. 57 da Lei 15.434/2020 também destoa do ordenamento jurídico nacional, ao permitir, em dissonância com a Lei Complementar nº 140/2011, que o órgão ambiental estadual, na intenção de dar cumprimento aos prazos previstos no diploma, contrate pessoas físicas ou jurídicas capacitadas ou realize convênios, parcerias ou outros instrumentos de cooperação, ratificando os resultados obtidos;
iv) art. 64 da lei estadual também padece de inconstitucionalidade, pois disciplina o licenciamento de empreendimentos que provoquem deslocamento de populações humanas, sem conferir proteção adequada aos direitos fundamentais dos envolvidos;
v) art. 220, caput e § 1º, da impugnada lei é inválido, porque permitiu a responsabilização de agentes públicos estaduais por condutas que causem danos em matéria ambiental apenas nas hipóteses de dolo e erro grosseiro, em desalinho com o texto constitucional.”.
O plenário do STF, por razões óbvias, que chegam a saltar aos olhos, por maioria, julgou tais dispositivos, que previam a simplificação dos processos de licenciamento ambiental a atividades que não fossem necessariamente de pequeno potencial de impacto ambiental, inconstitucionais. Também foi reconhecida a inconstitucionalidade das normas que delegavam o poder de polícia para pessoas físicas ou jurídicas com finalidades lucrativas e em regime concorrencial. Essa ação foi distribuída ao ministro Ricardo Lewandowski e prevaleceu o voto do ministro Cristiano Zanin, que foi o relator, “segundo o qual são inteiramente inconstitucionais o art. 54, V, da Lei n. 15.434/2020, o § 4º do art. 54 da Lei n. 15.434/2020, bem como arts. 57, 64 e 224 da Lei 15.434/2020 e o art. 14, § 1º da Lei 14.961/2016, todas as leis do Estado do Rio Grande do Sul, conforme informa o referido Boletim.
Vale ressaltar que o ministro Zanin entendeu que “há contradição da Licença de Operação e Regularização (LOR) com o art. 225 da Constituição Federal, pois ela será simplificada porque etapas instituídas não foram correta e legalmente cumpridas”.
Cumpre informar que, conforme destaca o Boletim, “são constitucionais a Licença Única (LU) e a Licença por Compromisso (LAC), apenas para que sejam aplicadas a atividades e empreendimentos de pequeno potencial degradador”. O artigo 57 da Lei nº 15.434/2020 também foi declarado inconstitucional porque a competência para legislar e expedir normas sobre matéria ambiental é competência da União. Confesso que me causou surpresa o legislador gaúcho não ter se dado conta disso ao legislar sobre essa matéria. Conforme narrado no Boletim, o ministro ainda salientou que o referido artigo delega o poder de polícia contrariamente à jurisprudência do STF, que entende ser possível “a descentralização do poder de polícia apenas nas fases de consentimento, fiscalização e sanção especificamente às pessoas de direito privado prestadoras de serviço público, em regime não concorrencial, sem finalidades lucrativas, o que não aconteceu no caso concreto, já que houve delegação a pessoas físicas e a pessoas jurídicas sem tal qualificação.”.
O ministro Zanin também considerou inconstitucional a retirada de uma etapa do Licenciamento Prévio, que permite que, com os dados coletados e com as informações prestadas, seja analisado o custo-benefício ambiental do empreendimento e, sobretudo, a sua exequibilidade. Para ele, essa norma protegeu de forma insuficiente os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana.
Esse julgamento foi algo importante para o Brasil e para o Rio Grande do Sul, pois dificultará que novas leis como essas sejam criadas ou aplicadas. Não creio que isso sozinho reverterá o quadro ambiental e climático desastroso do Rio Grande do Sul, que provavelmente continuará a sofrer com tempestades, enchentes, tornados ou secas, por muito tempo, mas pelo menos é um pequeno avanço em uma batalha pela defesa do meio ambiente que, se perdida, poderá levar à extinção de diversas espécies da fauna e da flora do planeta e à morte, quem sabe até extinção, da espécie humana. Infelizmente, são necessários muitos anos até que leis como essas sejam declaradas inconstitucionais pelo STF, e muitos danos ambientais, às vezes com consequências imprevisíveis, dramáticas e irreversíveis, ocorrem, sem que os autores de tais leis sejam penalizados, apesar de elas serem evidentemente inconstitucionais.
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Foto da Capa: Marcos Nagelstein / MTur Destinos