Em um determinado momento relativamente recente da história humana, a arte aprendeu a amar o ruído. Nem sempre pelo ruído em si, mas por esse ruído ser o subproduto daquilo que era exaltado como o novo tema de eleição em sintonia com o espírito de um tempo em transformação social e tecnológica radical. Não à toa tantas manifestações e manifestos do século XX fazem o elogio da máquina, da força, da potência, da velocidade, da indústria em detrimento do mundo natural, da tranquilidade e da “pasmaceira” dos dias anteriores à revolução industrial.
Perdem força nesse processo as metáforas do mundo natural enquanto o automóvel e o avião se tornam matéria poética. O poeta italiano Filippo Marinetti, ou simplesmente Marinetti, como a posteridade o conhece, declara no manifesto inaugural de seu movimento Futurista, publicado em 1909, que “um automóvel de corrida é mais belo que a Vitória de Samotrácia”. Em 1927, outro dos integrantes do movimento, Fedele Azari, é veemente em declarar que o futurismo sempre exaltou a máquina como “valor estético máximo” em um manifesto no qual propunha a criação de uma “sociedade protetora das máquinas” com “o propósito de proteger e fazer respeitar a vida e o ritmo das máquinas e especialmente dos motores, que dentre as máquinas são os mais sociáveis” (O manifesto permaneceu inédito. A tradução apresentada aqui é da pesquisadora Vanessa Beatriz Bortulucce, especializada na obra de Azari).
Claro, não é um fenômeno apenas italiano. Na mesma década do manifesto de Azari, o poeta americano e.e. cummings publicou em seu livro is 5 o poema she being Brand, uma longa e engenhosa descrição do que pode ser tanto um motorista impetuoso experimentando comandos e marchas de um automóvel zerinho quanto uma tortuosa e muito eufemística relação sexual (a tradução a seguir é minha, só dos primeiros versos, e não faz jus ao brilho criativo do original, mas nem todo mundo fala inglês):
“ela sendo Nova
em folha; e sabe,
em consequência um
pouco rígida fui
cuidadoso e (tendo
lubrificado inteira a junta
universal testado o meu
combustível e verificado seu
radiador e me certificado de que suas molas
estavam O.
K.) fui com tudo…”
Poesia à parte, embora esse seja um elemento aparentemente fora dos elogios artísticos à velocidade mecânica como símbolo do futuro, não há como todas essas loas serem cantadas a motores e a pistões e freios e combustões sem que se esteja também incluindo na equação o ruído como um elemento também inescapável da vida moderna, em oposição ao bucólico silêncio “passadista”.
A cidade
Mesmo antes da entrada em cena dos automóveis, a modernidade literária (que não é o mesmo que o Modernismo, veja bem) já havia criado uma identificação sólida entre a cidade e a experiência da vida moderna, com seus trens e barcos a vapor — em Tudo o que é sólido desmancha no ar, seu estudo sobre Marx e a modernidade, Marshall Berman recorre ao ensaio O Pintor da Vida Moderna, de Baudelaire, para dar voz a essa ânsia produzida pela modernidade de plasmar o novo efêmero veloz e cambiante na arte:
Ele (o pintor da vida moderna) se delicia com finas carruagens e orgulhosos corcéis, a esplendorosa sagacidade dos cavalariços, a destreza dos pedestres, o sinuoso andar das mulheres, a beleza das crianças, felizes de estarem vivas e bem-vestidas — numa palavra, ele se delicia com a vida universal.
Já em seu estudo sobre a representação literária da cidade, Todas as cidades, a cidade, Renato Cordeiro Gomes recorre a um dos textos que funda a representação do sujeito moderno na literatura: O Homem da Multidão, de Edgar Allan Poe, conto no qual um homem segue um estranho de capa de chuva roxa ao longo de uma jornada por uma Londres sufocante com suas ruas repletas de gente, mercados ruidosos, ruas congestionadas de tráfego, vielas labirínticas. Escreve Poe:
Era esta uma das artérias principais da cidade e regurgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão aumentou, e quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele momento particular do entardece, eu nunca me encontrara em situação similar e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.
Este olhar de dentro para o exterior é, simbolicamente, a literatura rendendo-se aos encantos da veloz vida moderna na cidade. Há luzes, multidão, cores, formas, estilos, e máquinas, muitas máquinas: a iluminação eletrônica, os carros, os bondes. A cidade moderna é o território da máquina, o que significa dizer que é também o território do ruído, da poluição sonora, algo que um século de automóveis nas ruas só ajudou a intensificar — agravando as neuroses da vida contemporânea.
O estrago
O que muitas vezes não se diz ao falar sobre a paixão modernista pelas máquinas é que boa parte dela é uma paixão pelo então ainda recente capitalismo. Não penso que seja coincidência que futuristas que elogiavam a velocidade do novo tempo e a sensualidade das máquinas acabaram tendo umas posições políticas bem sinistras (vamos ficar só com o exemplo de Marinetti e sua entusiasmada militância fascista que já tá de bom tamanho, embora o movimento estético inteiro visse perfeita correspondência entre seu ideário na estética e o do fascismo na política). E com o avanço do capitalismo em direção ao derretimento prometido por Marx ou ao estado vaporoso que muitos dos seus comentaristas apontam como o estado final inevitável do capitalismo tardio, passou-se do maravilhamento acrítico ao desconcerto. Não se trata aqui de falar de “apocalípticos e integrados”, como o fez Eco, mas de refletir o quanto essa mudança de perspectiva também não dialoga com a consciência cada vez mais disseminada do preço dessa evolução tecnológica voraz.
Um deles está justamente no temor pelas consequências a longo prazo da onipresença do ruído. O português Antonio Damásio argumenta em mais de um livro que o ruído constante, o barulho e o incessante fluxo de informações digitais ameaçam interferir na própria arquitetura do cérebro (falei disso, aliás, no primeiro texto que escrevi para a Sler, aqui). Outro nome da neurociência, o infelizmente já falecido Ivan Izquierdo (1937 – 2021), autoridade de reconhecimento internacional em pesquisas sobre a memória, alertou em um curto e vibrante ensaio publicado ainda em 2003, Silêncio, Por Favor!, para o efeito imediato da proliferação de ruídos: a confusão provocada pela intoxicação cerebral diante de tantos estímulos. Izquierdo advertia em seu livro que, mais do que o ruído em si, o que avultava como ameaça no horizonte da humanidade era o ruído permanente, já incorporado ao hábito da veloz sociedade capitalista contemporânea e promovendo estragos fisiológicos e psíquicos, desde a fadiga de um corpo em constante sinal de alerta até a falta generalizada de concentração.
A cidade não mais acolhe e o ruído não mais é a música do futuro, é sim o rugido da impiedosa selva urbana.
Benedetto
Pois na América Latina poucos souberam apreender tão bem essa característica turbulenta do ruído urbano constante como uma agressão quanto o escritor argentino Antonio Di Benedetto, em O Silencieiro, romance que a editora Globo publicou no Brasil, mas que imagino que hoje esteja esgotado – ainda se acha na Estante Virtual e imagino que se possa encontrar em sebos, se alguém estiver interessado.
A primeira coisa a se dizer do injustamente pouco conhecido Di Benedetto é que se trata de um autor que desde as primeiras páginas cativa o leitor pela qualidade elíptica, alusiva, “estranha” de sua prosa, composta de frases curtas, direto ao ponto, contando eventos encadeados por um tênue fio que não chega a dominar a narrativa. É um recurso estilístico muito eficiente para narrar processos de desagregação mental, e não é à toa que essa derrisão psicológica esteja presente nos três livros de sua autoria publicados no Brasil nas últimas décadas (parece uma amostra pequena, mas o fato é que Benedetti não deixou uma obra muito extensa).
Os Suicidas (1969) trata da paranoia de um jornalista que, obcecado pela ideia de que vai morrer com a mesma idade com que seu pai se matou, se vê envolto pelo tema do suicídio ao receber uma pauta de seu editor: rastrear a história de três pessoas suicidas cujo semblante após a morte refletia uma inquietante serenidade. O mergulho do personagem naquilo que desde o início parece assombrá-lo não afeta apenas a ele, mas à silenciosa e interessante fotógrafa que o acompanha na empreitada (não fui conferir no livro, mas acho que o nome dela era Marcela).
Já Zama (1956), romance histórico que é considerado sua obra-prima, é um retrato da colonização americana como uma empreitada vagamente absurda na qual um homem vai aos poucos perdendo a sanidade não pelas trevas que o circundam (como na abordagem de Conrad para o mesmo colonialismo), mas por aquelas que já habitam dentro dele. Ambientado no século XVIII em uma localidade remota da América colonial (no moderno Paraguai, digamos), o romance narra a lenta degeneração do europeu Diego de Zama.
Assessor letrado do governador local, o personagem vive na colônia apartado da mulher e dos filhos, ainda na Europa. Embora seja funcionário da coroa, a posição de Zama na estrutura hierárquica não é boa o bastante para solicitar ao rei a própria transferência, ficando suas pretensões entregues aos caprichos dos governadores que se sucedem na função em uma terra tão distante do centro político que os funcionários são pagos irregularmente com meses de atraso. Com a passagem dos anos, vai gradativamente abandonando algumas das características pretensamente “civilizadas” que sustentavam sua personalidade. Abre mão da fidelidade à esposa, tem um filho bastardo, entrega-se à bebida, torna-se agressivo, perde a conexão com a realidade até buscar na delirante e malfadada aventura de caçar um criminoso procurado a oportunidade de angariar pontos com a administração colonial e poder voltar à Espanha.
E entre um e outro desses ótimos romances, Benedetto publicou O Silencieiro, no qual a mesma prosa de um laconismo perturbador narra outro mergulho na loucura, desta vez provocado pelo inescapável ruído da vida moderna.
O inferno são os outros
Em O Silencieiro (neologismo com o qual se define o protagonista, um homem que tenta inutilmente cercar-se de silêncio) o personagem principal é um ex-estudante de Direito (não se formou) que trabalha no serviço burocrático de uma firma e mora com a mãe, viúva, em uma Buenos Aires não nomeada dos anos 1950. A mãe tem um rádio, mas só o escuta quando o filho não está em casa — a casa também não tem uma TV por determinação dele. Tenta, sem sucesso, escrever um romance magistral chamado O Teto, mas se deixa ficar, apático, e não se dedica ao trabalho. Já de cara entendemos que o protagonista é um neurastênico hipersensível ao barulho: ao chegar em casa depois do trabalho, certo dia, ele descobre que estão testando o motor de um ônibus no terreno baldio atrás da parede de seu quarto e sai de casa como se fugisse da morte em direção ao trabalho, que prefere às agressões do ruído:
Considero o homem como fazedor de ruídos.
Seus ruídos são diferentes dos ruídos cósmicos e dos ruídos da natureza.
O homem é emissor natural de sons: a voz (a fala e o canto). Mas também os produz com instrumentos: uma pedra, um ferro, batidos contra alguma coisa; os meios de fazer música, a máquina… (o ruído-máquina).
A máquina é útil. Não seu ruído, pior se exagera ou não se modera. Frequentemente, nem se modera, nem se controla, nem se reprime. Produz, em quem o gera, uma euforia de poder (poder agressivo?)
Os seres humanos são geradores de sons. São (os demais).
Eu teria de recear a vizinhança de todas as pessoas. E não é essa a minha atitude: sou, ao contrário, confiado.
Há um ruído… material.
E há um outro ruído que é… como é?
Vem das próprias pessoas, ou das condições que as pessoas criam ou da convivência.
Às vezes se percebe como um bloqueio, como uma onda ou infiltração sonora, ou um sussurro opressivo e deprimente.
Tampouco é assim. Não é possível ouvi-lo. É preciso supor ou adivinhar essas características. O que dele se capta, se recebe, são as consequências. Essencialmente — como o outro, o ruído material —, perturba. É tão intensa a sua gravitação que desequilibra, não os sentidos… o quê?…
Mais tarde, o terreno é vendido, mas isso não traz alívio ao neurastênico, pois os compradores da área se dedicam a erguer um galpão onde na sequência se instala uma oficina mecânica. Mais tarde, uma feira livre. E assim o anti-herói deste romance segue seu calvário de episódio em episódio, fracassando em isolar-se do ruído e enlouquecendo gradativamente de tentativa em tentativa.
O protagonista de O Silencieiro é um fugitivo tentando escapar da cidade enquanto prossegue continuamente cercado por ela – porque a cidade é inescapável, tanto o maravilhamento dos confortos trazidos pela era da máquina quanto sua faceta desesperadora de epicentro da onda de ruídos que forma a vida moderna.
E isso que tanto Di Benedetto quanto seu personagem não viveram hoje, com cada vez mais carros nas ruas, buzinas, idiotas inconvenientes com celular tocando música em volume de rádio a qualquer hora do dia, veículos que apitam para dar ré, que tocam alarme para estacionar, que roncam motores para dar partida. O mundo que construímos e no qual o único refúgio possível muitas vezes é um dispositivo de áudio e um par de fones de ouvidos tocando uma música particular alta o suficiente para isolar o indivíduo do ruído ambiente.
Um mundo em que a única paz possível para a ansiedade do ruído permanente parece ser mais ruído.
Aliás, numa Porto Alegre em que se debatem atualmente visões opostas sobre que cidade queremos, a que preserva ou a que derruba tudo em nome de uma noção tão ultrapassada de progresso e “empreendedorismo”, melhor não perdermos de vista essa questão…
Foto da Capa: Antonio Di Benedetto / Divulgação
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