Ao Dr. Fernando Neubarth
Uma de nossas leis de dentro aponta para o fato psicológico de não sermos um só, tipo assim um bloco maciço. Ou integrado. Cindimos. Dissociamos. Dividimo-nos, enfim, desde o princípio. Luíza, a fisioterapeuta, por exemplo. Voz mansa, educação exemplar, civilidade em pessoa. Mas é ela iniciar a liberação manual dos músculos de seu paciente que a princesa vira ogra e já há pelo menos duas Luízas em ação. Cindidas. Divididas. Dissociadas.
A própria voz da Luíza, que nunca deixou de ser mansa, é agora capaz de vaticínios ferozes, como aquele em que descreveu meus glúteos como pouco tensionados, ou seja, flácidos. Ao falar, a princesa mantinha o recato. No que dizia, a ogra me chamava de bunda mole. Cindida. Dissociada. Dividida. E foi pior ainda quando se juntou à Graci, a educadora física, e decidiram juntas ampliar o diagnóstico. Foram longe, literalmente, e encontraram uma pesquisa da Maio Clinic, de Minnesota, que seria a minha cara. Ou a minha bunda. Ou a cara da minha bunda.
O diagnóstico atendia pela alcunha de “Síndrome do bumbum morto”, também conhecida como “amnésia glútea”, um mal destinado a pessoas que passam mais de oito horas por dia sentadas, sem intervalos para alongar-se ou reforçar os músculos. Vai-se a musculatura dos glúteos que entra em falência. A dor se torna crônica, afetando o ciático, joelhos e até o tornozelo. Para quem duvida da ousadia criativa dos cientistas, é só acessar o link, onde a Dra. Jane Konidis sugere que o lesado se levante pelo menos a cada 30 minutos e possa bater suavemente com a ponta dos dedos no bumbum, fazendo o seu Valdir, porteiro do prédio em que trabalho, perguntar sinceramente se estava tudo bem comigo. Comigo, sim, mas não com o meu bumbum – respondi com veracidade.
Mas, para quem duvida da ousadia dos sonhos – Evoé, Freud -, posso descrever o que sonhei, na noite seguinte ao diagnóstico. O ambiente nebuloso clareou e logo percebi que o cenário onírico correspondia ao Crematório. A placa na entrada era inconteste: estávamos na capela 7, para a cerimônia de despedida da minha bunda. À la Klein, as partes do corpo apareciam personificadas. Cindidas. Dissociadas. Divididas. As duas mãos acariciavam o caixão redondo, enquanto as pernas o sustentavam. A cabeça ria, de forma inadequada, incapaz de pensar sobre o assunto. Salvou-a o coração que, respeitoso, pediu ajuda para os olhos marejados e expressou uma tristeza verdadeira. Diante do par de ouvidos participativos, todos crendo no mito da ressurreição, ele providenciou uma trilha sonora para o ambiente lúgubre. E surgiu a Anitta, cantando respeitosamente “joga esse bumbum pra cima, joga esse bumbum pra cima.”
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Foto da Capa: Gerada por IA.