Eu sinto prazer de ser quem eu sou e estar onde estou, e agora ficou a falta de você, Rita Lee, aquele último show, turnê de despedida, com as músicas que embalaram absolutamente todas as fases da minha vida. Não sei como bate aí, mas nem mesmo a imagem da roqueira careca me tirou a sensação de mulher forte, rara, resistente como uma fênix. Sentia a Rita sempre ali, cantante, irreverente, polêmica.
Talvez porque Rita leve consigo parte da minha ilusão de que haveria muito tempo e que ela estaria no palco, em breve, viva e cheia de graça para fazer muita gente feliz. Se vencemos uma pandemia por que não vencer o câncer? Alguém tem a resposta? Apesar, contudo, todavia, mas, porém, não vou chorar. Vou lembrar. É sinal que amei demais.
Não consigo imaginar o meu mundo sem a revolução mutante desta artista que fez muito e tornou-se incontestável – sobre isso os jornais já escreveram. Pra mim é mais do que o sucesso absoluto e concreto, me importa mais o intangível, o abstrato e o inexplicável sentimento capaz de traduzir porque era a Rita Lee e porque sou eu.
A expressão sobre o amor e a admiração é atribuída originalmente ao filósofo Michel de Montaigne, um homem das palavras, mas para explicar uma relação de amizade sintetizou assim: gosto porque era ele e porque era eu. Mais tarde, a frase passou a ser usada para se referir a pares românticos como na canção de Chico Buarque, trilha do filme A Máquina, e também à amizade entre mulheres que pouco se conhecem, mas compartilham experiências amorosas, como no livro da Clara Corleone com mesmo título.
É a manifestação mais simples e objetiva para explicar o amor entre duas pessoas: eu gostava dela porque era ela e porque era eu, como explica Chico neste vídeo. Há não muito tempo eu entendi que gostar ou não gostar de uma pessoa diz muito mais sobre mim do que sobre o outro. Muitas vezes gostamos mais de quem somos quando estamos com uma pessoa do que da pessoa em si. Essa é uma verdade para casais e para amizades. Porque gostar ou não gostar é construção de identidade. E assim é também a relação com artistas.
Por mais que tenhamos socialmente construído critérios racionais para definir porque um artista é mais ou menos relevante, talentoso e popular na área da cultura, o fato é que um ator, músico, escritor ou cineasta é o reflexo dos fãs e vice-versa. A relação é fluída, acontece no movimento, na troca, na interpretação, nas sensações e nas experiências. Vivências e atitudes controversas não faltaram na trajetória de Rita. E, claro, ela não foi unanimidade.
A artista embalou muitas gerações e talvez a minha tenha sido a do meio e, por isto, a mais impactada. Rita já havia sido Mutante quando eu nasci. No meu primeiro festival de música, em 1996, lá estava ela para o melhor show da noite cantando a misteriosa Atlântida em homenagem à cidade sede do evento e entoando os hinos da libertação e independência feminina. Não lembro ao certo quais músicas ela cantou, mas todas me tocaram, da sensualidade de lança-perfume e mania de você, à insolente ovelha negra até o mantra da vida e morte: não quero luxo, nem lixo, meu sonho é ser imortal, meu amor.
Era Rita no palco, celebrando o vigor dos 49 anos, e era eu na multidão, prestes a completar 18 anos. Era a ruptura geracional, quebra de padrões, era a tradução de sentimentos, era a letra cantada com as palavras delas, mas que poderiam das minhas amigas, da minha geração e poderiam ser minhas, como muitas vezes foram.
As composições de letras cantadas em meio à multidão na época e tantas outras vezes em shows e festas têm muito mais vigor e significado para a Marlise de hoje. Cantar todos cantam, mas poucos sabem e sentem o poder daquelas palavras. Não há libertação maior do que a autenticidade de sentir prazer em ser quem se é e estar onde está, Rita. Obrigada por me ensinar esta lição desde muito cedo, ainda que o aprendizado possa ter sido tardio. Por aqui eu sigo entoando os nossos hinos, não vou esquecer e não vou deixar morrer na minha memória porque você conseguiu: se tornou imortal. Porém, é fato, agora falta você.