Publicado em 15/07/2024
Tem dias que acordo cansado. Não é esse cansaço dos músculos do corpo ou do cérebro. É outro, mais insidioso. Parece que o nosso tempo é obcecado pela produtividade. Não somos mais pelo conhecimento, pelo caráter ou por qualquer outra virtude. Somos apenas pela nossa capacidade de produzir. E, assim, todo dia nos colocamos a pensar o que vamos produzir hoje para justificar a nossa existência. Por isso, quando falamos em cansaço já o associamos à produção.
É sobre isso que trata “A sociedade do cansaço”, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. É sobre o excesso de positividade, a supervalorização da produtividade, a cultura da meritocracia e a hiperconexão por meio da tecnologia. Mas não é esse o meu cansaço. Nem o cansaço existencial, para o qual não há uma definição específica, mas que pode se assemelhar à crise existencial, a você em relação ao mundo. Também não é isso. Como não achei nada melhor, vou chamá-lo de Cansaço Civilizacional.
Num sábado desses, vinha de carro por uma avenida, e ouço um estrondo na minha lateral e vejo um caminhão passar muito perto do meu carro. Voltei a olhar para o lado e o meu retrovisor estava despedaçado. Será que o motorista não viu? A avenida estava movimenta, mas fui atrás dele, ele estava rápido. Dei sinal de luz e buzinei, mas ele acelerou. Então, entendi, ele estava fugindo.
Confesso que o sangue me subiu e tive vontade de ir atrás dele. Quem me conhece sabe que sou calmo, mas não sou livre da ira. Também me conheço. E já me enxerguei num vídeo no Instagram, arrancando o sujeito pelo pescoço do caminhão. Ou levando um tiro. Ok, deixa para lá. Vou ligar para a seguradora e resolver o problema. Como assim? Meu seguro não está ativo? Mas eu pago todo o mês, moça? Alô, corretora. Infelizmente, houve um problema de comunicação. Faltou uma informação à época em que o senhor trocou de carro e a seguradora negou o endosso.
Negociação feita, a corretora admitiu o erro, pagou os 3 mil reais (sim, custou isso), mas não sem descontar a franquia prevista na apólice de um seguro que não existia. E me convenceu que foi bom eu ter seguido pagando por um seguro fantasma por três meses já que só assim eu pude fazer o endosso com melhor preço e sem perder os pontos. Entendeu, Kafka?
A minha geração cresceu acreditando que o mundo só melhoraria. Que a palavra evolução não teria um sentido denotativo, apenas positivo. Fez-se uma revolução de costumes, a democracia prosperou em boa parte do mundo, a saúde deu saltos gigantescos, a tecnologia também, passamos a viver mais e com mais conforto. E a Internet? E a inteligência artificial? Um avanço inimaginável.
Mas continuamos com a brutalidade da polícia sobre pobres e negros. Os assassinatos de pessoas trans. As guerras sem sentido. A matança por religião. Perseguições por religião. O racismo em estádios de futebol. A cidade esburacada. A praça malcuidada. O ônibus que não passa. O médico que não se tem. O governo que cobra imposto de renda de quem ganha R$ 2.500 por mês. As mulheres que ganham menos pelo mesmo trabalho dos homens. O retrocesso na discussão do aborto, das drogas. Imigrantes escravizados.
Mas tem também o serviço contratado que você tem que brigar para ser entregue. O Uber que liga o pisca e para exatamente embaixo de uma placa de proibido estacionar e parar, sem se importar com o transtorno no trânsito. A rua que roubou para os carros a metade da calçada que era para caminhantes. Os deboches com pessoas que pedem dinheiro nos sinais. Os prédios históricos pichados. Ou demolidos. A lista é infinita, você sabe.
E olho pelo meu retrovisor quebrado e vejo apenas um rastro de sangue e desesperança. É a isso que resolvi chamar de Cansaço Civilizacional. É a triste constatação de que humanos não evoluem tão rapidamente quanto a sua capacidade de criar. Somos o mesmo público aplaudindo o gladiador que matou o outro. Somos as mesmas tribos disputando a comida escassa.
A minha sorte é que acordo todo o dia e não lembro mais de nada disso. E penso que, se essa mesma civilização foi capaz de produzir coisas tão incríveis nas artes, na filosofia, na tecnologia, ela há de encontrar os seus caminhos. Vou levantar e tentar fazer a minha parte. Só por hoje.
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Foto da Capa: Gerada por IA.