Conhece a expressão The Bucket List? No início deste milênio, foi feito um filme que a tornou popular. Trata-se de se escrever uma lista de desejos a serem cumpridos antes de se dizer adiós, adieu, adeus, mundo. Eu comecei a minha quando era adolescente. E digo comecei porque nunca consegui parar de anexar vontades a ela, muitas desencadeadas em salas de cinema. Ao contrário da programação do patriarcado, nunca pensei em casamento e filhos. Isso me parecia tão certo quanto A voz do Brasil nas rádios. Fora que, depois da literatura, a Sétima Arte sempre foi o meu assunto favorito no mundo cultural. Aqui no país, o The Bucket List, do Rob Reiner, entrou em cartaz com o título Antes de Partir. É dele também o Harry e Sally – Feitos Um para o Outro, que defende a teoria de que é possível amar uma pessoa sem estar em um relacionamento com ela e que também é fácil, para uma mulher, simular um orgasmo: la petite mort, a pequena morte segundo os franceses.
A gente nunca sabe quando irá, de verdade, morrer. Por vezes, diante de problemas de saúde, temos uma vaga ideia. Eu gosto de pensar sobre a morte. Na semana passada, falei que escreveria sobre amizade nesta coluna. Pelo jeito, não vou, apesar de um acontecimento envolvendo uma pessoa que estimo estar a me arranhar. Seria ótimo se eu pudesse colocar um curativo sobre ele. Como não posso sequer assoprá-lo, estou me dando o famoso um tempo. Penso que sofro mais por conflitos com amigas e amigos do que pelo fim de namoros. Hoje, um pouco antes de sentar-me para escrever, pensando sobre finitudes, vi, no Instagram, um trecho de um outro filme, Capitão Fantástico, do Matt Ross. Nele, um pai diz ao filho jovem coisas com as quais concordo, incluindo a importantíssima “não morra”.
Meu pai me pedia para ficar viva. Quando eu disse que iria viajar pela Turquia, ele quase enlouqueceu. A toda hora vinha falar sobre o filme O Expresso da Meia-Noite, do Alan Parker. Em sua cabeça paterna, alguém poderia colocar drogas na minha bagagem, e eu passaria o resto da minha existência presa. Nunca colocaram. Bem verdade que sempre fui muito cuidadosa, mas fui revistada no Marrocos, como se eu fosse uma daquelas personagens salvas pelo Rick Blaine em Casablanca. Michael Curtiz fez um grande filme. Casablanca está entre os meus dez favoritos. “Rick, você me despreza?”, Ugarte pergunta. “Se eu pensasse em ti, provavelmente, te desprezaria”, Rick responde. Não é simples e genial? Sim, mas voltemos à minha Bucket List.
Pois bem, ainda que eu tenha construído uma lista um tanto Indiana Jones, quase a completei. Entre outras coisas aparentemente incompatíveis com a minha delicadeza e com a educação meio fóbica que meu pai me deu, entrei em duas pirâmides no Egito, fui a Machu Picchu de helicóptero, acariciei um tubarão, subi até a cratera do Vesúvio. Meu pai, corajoso com bisturis, morria de medo de acidentes e de nos perder. Teve a imensa sorte de desencarnar (ele era espírita) com todos os filhos vivos. Eu passei pela experiência materna de perda. Na época, escrevi um texto. A Mecânica do Trucidamento. O destino, ou seja lá o que for que equivalha a ele, me escolheu para se derramar sobre. Todos os dias, ele escolhe muitos de nós para algumas provas de resistência física e psicológica bastante difíceis, que, se a gente vence, reconfigura para sempre nossa força. Um aprendizado diferente e duríssimo, mas não desumanizador. Minhas infelicidades ensinaram à minha alegria a sair vitoriosa.
Zelar pela minha alegria está entre os itens da minha Bucket List. Eu gosto de metas emocionais. Ainda segue aberta, e sem pressa, a minha de ter “a sorte de um amor tranquilo com sabor de fruta mordida”, uma coisa antiga, dos tempos de Eva expulsa do paraíso, que faz sentido para mim. Não acredito em relacionamentos sem nudez e sexo. Sei que eles existem aos milhares, milhões, e dou parabéns aos envolvidos, porém, acredito que o que eles vivem é amizade. Não que isso seja ruim e que amigos não possam trocar prazeres. Podem. Não sei se devem. Se trocarem, aconselho (olha a pretensão da criatura) a manterem esse fluxo em sigilo e sob controle para evitar mal-estar e desastres quando alguém se apaixonar por uma terceira pessoa. Coisa enfadonha para a terceira pessoa é ter de lidar com as cobranças e os ciúmes daqueles que vêm com a conversa de que ‘Fulaninho e eu somos amigos a vida toda”. E também ter de lidar com a inveja. A inveja, lembram, levou Iago a encher o coração de Otelo de desconfianças e, desse, a matar Desdêmona. Shakespeare (não é incrível?) há mais de quatrocentos anos já escrevia sobre feminicídio. Aqui, no Rio Grande do Sul, o feminicídio aumentou 1000% neste ano. E se ele chegou a esse ponto, imagina em que percentuais não estarão as outras formas de violência.
Combater a violência contra a mulher sempre esteve na minha Bucket List. Não é, nunca foi uma meta possível de se alcançar sozinha e nem é de curto prazo. Implica a adesão masculina. A cantora e escritora Patti Smith, que adoro tudo o que faz, disse: “A única coisa que eu pediria à nova ascensão do feminismo é que faça com que a relação entre homens e mulheres se fortaleça, que de modo algum nos separe, porque somente juntos podemos enfrentar os desafios do futuro”. Na prática, não sei se o seu pedido está sendo atendido. Tenho várias amigas e colegas fechadas para o que os homens têm a dizer, como se fossem todos clones uns dos outros em um exército do Star Wars. E tenho também amigas que os imitam justo naquilo que repudiam, julgando os corpos, as roupas, as ideias, os relacionamentos e a vida sexual das outras.
A vida sexual das mulheres causa tamanho desconforto social, que acaba por ir se tornando insignificante e dispensável. Aqui abro um parêntese para contar o que ouvi num presídio em que trabalhei, como voluntária, com mulheres que cumpriam longas penas. De acordo com elas, o direito à visita íntima estava garantido, havia espaço destinado para o encontro com seus parceiros, mas, como esses encontros criavam burburinhos e comentários, elas preferiam renunciar a ele. Sentiam-se sujas e promíscuas por fazer sexo em um horário predeterminado. De fato, não é simples manter a libido quando se está encarcerada e tampouco a intimidade com quem segue a vida no lado de fora. Eu não sei como agiria. Era para haver, mas não há, ambiente favorável à integridade humana dentro das penitenciárias. No Capitão Fantástico, na mesma cena em que o pai pede ao filho jovem que não morra, instantes antes, esse pai diz: “Quando você fizer sexo com uma mulher, seja gentil e a escute. Trate-a com dignidade e respeito, mesmo que não a ame”. Uma conduta óbvia, que, para muitos, segue tão desafiadora quanto saltar de paraquedas, aventura que esqueci de pôr na minha Bucket List.
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Foto da Capa: Gerada por IA.