Eu ia dizer anos Setenta, mas não foi. Foi antes e, por isso, faz mais de meio século, meu Deus! Ela me olhava brincando com algum pneu, subindo em algum brinquedo de ferro, fazendo um desenho de papel para o Dia das Mães ou um cinzeiro para o Dia dos Pais. Sim, naquele tempo, fumava-se impunemente.
Se o pneu caía sobre mim, se eu caía do brinquedo, se o desenho ou o cinzeiro não tinham ficado como eu queria, ela me olhava, agora com compaixão. Acho que resgatava tudo o que eu tinha ou me faltava no olhar de minha mãe, meu pai, meus padrinhos. Hoje, mais de cinquenta anos depois, sei que ela olhava também para todos os outros, mas, quando eu tinha três anos, a noção do outro não era tão clara para mim. Aquele olhar imenso da pequena menina era só para mim.
Depois, as décadas passaram voando, mas sempre reconheço o seu olhar pousado em nós. É um olhar permanente. Espontâneo. Amigo. Porque algum de nós foi feliz no amor de uma só reunião dançante, nos anos Setenta. Ou fomos vencedores em um campeonato, na mesma década. Ou, acolhendo mais ainda, porque não fomos e estivemos tristes nos anos Oitenta, Noventa, e assim sempre por diante sem deixar de olhar.
Com o tempo sempre veloz, comecei a publicar o que eu escrevia. Às vezes, com um pouco mais de leitores; às vezes, menos, mas sempre com a certeza de que alguém estaria olhando para aquelas palavras. Basta uma pessoa. Um olhar. O mesmo tempo a fez juíza, depois procuradora, o que significa que continuou olhando para todos os lados, com este olhar necessário para uma sociedade civil, e só não maior do que aquele, sem julgamento, para a sua sociedade de amigos particulares. A quem sempre olhou, assim como olhará essas palavras, logo que forem impressas em busca de algum olhar.
Foto da Capa: Freepik
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