Começo recuperando aqui algumas notas publicadas na imprensa francesa há quase dez anos atrás, pelo jornalista Renaud Lambert (“Amérique Latine, pourquoi la panne? – América Latina, qual a razão da pane? – Le Monde Diplomatique, edição Janeiro-2016). Esse recuo no tempo tem aqui dois objetivos: argumentar no sentido de sua não-recenticidade e de seu caráter cíclico. Nessa matéria, o supracitado jornalista francês recupera trecho de entrevista do então presidente do Uruguai em final de mandato, José “Pepe” Mujica, em que se lhe foi perguntado por que razão seu governo não tinha conseguido levar mais longe as reformas que estavam em sua plataforma político ideológica. Com seu jeito despachado, Mujica respondeu, curto e grosso: “Porque as pessoas querem iPhones!” Nessa mesma linha, o embaixador da Venezuela na França à época, Héctor Michel Mujica Ricardo, relata conversa com uma jovem mulher num bairro popular de Caracas, às vésperas da eleição presidencial venezuelana de 2013 – mulher que, segundo o embaixador, encarnaria uma das categorias sociais mais favorecidas pelas políticas redistributivas do Chavismo; diz ela: “Antes, eu vivia na miséria. Foi graças a Chaves que eu consegui melhorar. Agora que não sou mais pobre, eu voto com a oposição.”
Já em 2016 discutiam-se dinâmicas que se passam nas classes mais desfavorecidas, como foi o caso da famosa “classe D de Lula” (aquela que ascendeu do lumpemproletariado e conseguiu seus primeiros boletos, suas casas no programa de moradia popular, além de pela primeira vez passar a cogitar de enviar seus filhos à universidade, pública ou privada, graças ao sistema de cotas e de crédito escolar implementados pelo governo à época). O quadro, contudo, se completa com importante processo que teve lugar nas classes médias. Nessa mesma ocasião de solavanco das esquerdas, de há quase dez anos atrás, surgiu em redes sociais argentinas consideradas progressistas um documento que precisa ser retomado, pois aparentemente continua pertinente, acerca do que se denominaram “Os ciclos econômicos da Argentina”. Ora, tal documento alude a um processo que poderia contribuir muito para explicar o fenômeno Javier Milei na Argentina, e até mesmo a chegada de Donald Trump ao poder nos EUA. Tal processo, de fato, seria passível de apropriação, como ferramenta de reflexão, para vários cenários mundo afora, incluída a cena brasileira. Eis o ciclo:
[1] A direita assume o poder com o apoio das classes médias e, ato contínuo, destrói o poder de compra, as perspectivas e sonhos de consumo dessas mesmas classes médias.
[2] As classes médias pauperizadas ficam mais sensíveis às propostas progressistas, de resgate da cidadania, de reação aos vilões de direita que as pauperizaram, passam a votar à esquerda, aliando-se aos bolsões do voto militante de esquerda, e aí conseguem finalmente eleger um governo de esquerda.
[3] Eleito, esse governo volta-se em primeira instância para os bolsões de pobreza, que ascendem socialmente em termos de consumo e inserção social, e tal governo beneficia igualmente as classes superiores, tendo em vista seu caráter reformista (e não revolucionário – o que de resto não é possível pela via de acesso ao poder através do canal democrático do voto, e manutenção desse poder através de negociação com os grupos de centro político); as oligarquias querem, contudo, recuperar sua hegemonia, pois sabem que governos de esquerda, mesmo na condição de aliados pela governabilidade, não são suficientemente confiáveis.
[4] Inicia-se movimento político de reconquista do poder pelas oligarquias; as classes médias empoderadas identificam-se com o poder conservador de direita, e mesmo os “remediados” com upgrade recente para a classe D se tornam igualmente sensíveis ao discurso conservador. Esse dado estrutural pode ser circunstancialmente agravado por aspectos relacionados à corrupção no trato da governabilidade, agenda de costumes e segurança pública e perspectiva de turbulência congressual devida a reformas tributárias – notadamente aquelas voltadas para o arcabouço fiscal do Estado. A direita, nesse contexto, reconquista o poder, com ampla ajuda da classe média – fiel da balança que antes ajudou a eleger a esquerda, e que agora ajuda a eleger a direita, dando um tiro no pé representado pela retomada do ponto 1 do ciclo: as oligarquias, afinal, não têm compromisso com classes médias metidas a besta, mas estas, de forma sistemática e cíclica, demonstram amnésia histórica recorrente.
Estamos, nesse belo país, em pleno estágio 3, em contexto conducente à intensificação das lutas das oligarquias no estágio 4, que reiniciará o ciclo. Eu já vi esse filme antes, bem antes, com gente de minha família marchando com Deus, na década de 60 do século passado, pela Pátria, Família, Tradição e um mínimo de perspectiva de comprar um carrinho melhor; depois, todos orgulhosos de, junto com Fafá de Belém, urrar pelas Diretas Já, depois eleger aquele que antes chamavam de Sapo Barbudo, depois lutar pelo aniquilamento completo de tudo que cheire a petismo, esquerda e assemelhados, todos convencidos que fazem isso em prol da honra, da moral e dos bons costumes, esquecidos do atavismo maldito em que estão metidos desde sempre.
Se as alianças são possíveis e mesmo desejáveis, não é desejável que a esquerda passe do estágio de governo com a direita para o estágio de governar para a direita. Lula advertia, desde colóquio no Instituto Lula, proferido em 05/10/2015, que “cada vez que um partido de esquerda chega ao poder, ele se fragiliza.” É natural que ele se fragilize, porque ele tem diante de si uma tarefa tríplice: a) manter no curto e médio prazo a governabilidade, e no longo prazo o poder; b) manter um programa de esquerda, que vai muito além de proporcionar ao povo trabalhador meios para que cada um brinque de “ser bacana”, ser consumidor, jogar o mesmo jogo de sempre – conseguir mandar os filhos para a escola e para a saúde privadas, ao invés de algo mais além…; c) manter a própria vida orgânica das entidades partidárias, cujos militantes de base agora disputam e perdem espaço para os companheiros que têm missões de governança.
Resta, por fim, aludir a como ficamos para os dias que virão. Tudo o que diria é que é preciso quebrar o ciclo aludido pelos argentinos, evitando a todo custo divulgar a ideia segundo a qual a saída, agora, deveria ser necessariamente conservadora – eleger a direita. Esse é um engodo cansativo, é por ele que se retoma o ciclo do rame-rame da história dessa sofrida América Latina. A proposta de esquerda continua de pé para todo aquele que se insira na condição de assalariado, mas também na condição de quem quer para o país um governo que tenha compromisso com uma maioria fragilizada, e não com uns poucos que assumem a posse dos meios de produção do país. Não há perspectiva para a classe média fora da esquerda, pela simples razão de esse segmento ser constituído, em sua maioria, por trabalhadores que possuem bens (até casas na praia e bons automóveis), mas não os meios de produção deles. Onças e capivaras olham o cerrado a partir de pontos de vista sempre inconciliáveis, apesar de que, tudo bem pesado, têm muitos interesses em comum (sempre a partir de perspectivas diversas).
A classe média brasileira parece desencantada com o governo de esquerda que ajudou a eleger para o Brasil. Sem drama e sem derrotismo, com determinação e paciência histórica, precisamos alimentar narrativas, argumentações e discussões que preservem propostas compromissadas com o resgate dos mais frágeis, com a correção das injustiças do darwinismo social que o Capitalismo é pródigo em gerar. Votar na direita, nesse contexto, permito-me dizer, é algo absolutamente pertinente para quem se alinha do lado da oligarquia dos proprietários; no caso dos demais, trata-se de equívoco que oscila entre a burrice e a ingenuidade, a depender de cada caso. Trabalhar com a direita, sim (eventualmente); trabalhar para a direita, jamais. Esse é o espírito que quero compartilhar e disseminar para os dias que virão. Como isso vai se traduzir em termos do concreto mais concreto – direções, partidos, candidaturas, vitórias e derrotas – vai depender de quem continuará solto ou preso, elegível ou inelegível, vinculado a qual sigla partidária, inserido em qual narrativa biográfica. Fundamental será a oferta e manutenção de uma proposta de esquerda – com todas as dificuldades de se conseguir uma, atualmente; sabendo-se que a alternativa conducente à direita não é alternativa plausível para muitos – grupo em que me insiro – é pura neurose política, para dizê-lo da forma suave dos psicólogos…
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Foto da Capa: Wilson Dias / Agência Brasil