Lembra das crianças brincando na hora do recreio? Eu conversava com elas, era repleto de entusiasmo juvenil! Eu conversava, mas não era escutado. Será que eu falava a mesma língua deles? Mas eu fui educado em português como todo mundo… O que acontecia que não me entendiam?
Os fantasmas da incomunicabilidade devem aparecer de vez em quando. Temores e apatias, gritos e memórias de outras crianças repletas de dificuldades… também para demonstrarem algo melhor em todos os sentidos, algo que valesse a pena comunicar. Eu não sabia bem por que tantas vezes as pessoas se afastavam ou viviam sozinhas. Quando criança, me assustava muito a ideia de viver só em uma montanha. O eremita passava sempre como uma figura quase impossível de conceber, pois vivia com minha família em uma casa de alvenaria com jardins e piscinas. Lá, nós todos estávamos muito bem juntos… sem nos comunicarmos.
Claro, essa reflexão da criança que virou adulto e observou atentamente as figuras de sua vida para tentar entender também a sua própria origem. Até que um dia ouço de meu filho mais velho, inquiridor com sua sensibilidade que lhe é própria: “Pai, por que Adão comeu do fruto proibido?” Eu lhe expliquei da forma mais simples e depois fui aumentando o nível da explicação para mostrar para ele certas nuances da história. Eu sabia que Leo já tinha lido muito bem e sabia também que ele adorava o desenho Dragon Ball. “Adão desobedeceu Deus, mas que interessante isso… por que será que ele desobedeceu Deus?” Meu filho pensa e me responde em seguida: “Ele foi arrogante!” Eu, feliz com a resposta dele, assenti com a cabeça. “Sim! Ele foi arrogante, mas note, ele também queria conhecer a sua origem. Por que será que eles querem pegar as sete esferas do dragão para despertarem Shenron e terem assim um desejo respondido?” Noto que meu outro filho menor, Caetano, estica as sobrancelhas com espanto. “Será que eles deviam ir atrás das esferas? Será que eles realmente precisavam delas?”, eu trouxe essas duas questões e fui tomar banho porque aquele dia estava muito quente.
O Adão que conhecemos era tal como uma criança desobediente. Você diz para ela não fazer e, é claro, ela vai lá e faz. Era de se esperar, porque Deus apenas ri para depois ficar mais brabo. A punição é bem simples e eu falei para Leo: “A punição foi perder a imortalidade… Nós nos desligamos e isso nos levou impreterivelmente a buscarmos uma outra forma de nos religarmos. Chamamos isso de religião, religação com Deus. Claro, não deveríamos jamais sentir que estamos desligados dele, mas o ser humano precisa de memória para saber que as coisas foram reais em algum momento da sua história.”
Como é curioso que a primeira e mais importante história da humanidade tenha sido sobre a origem do ser humano e seu desamparo diante da sua própria origem. Como é forte o suficiente para ainda nos perguntarmos todos os dias para afastar nossa ignorância diante dos começos misteriosos da nossa existência. O exato momento em que aquele ser estranho começa a balbuciar uma língua capaz de entrar para dentro de si e considerar os elementos que o fizeram ser o que ele é. Afinal, não deveria ser algo realmente importante para mudar nossa natureza, capaz de desligar a imortalidade e apenas a nos deixar uma mera tentativa de comunicação com esse Deus supremo que só responde quando quer… ou que nos fechamos para estarmos com ele por algum motivo.
Meu filho Leo faz perguntas incríveis. Me impressiono com as perguntas espontâneas dele. Ele já lê melhor do que eu quando eu tinha dez anos. Eu espero que essas perguntas sejam parte da busca por uma liberdade sadia e confiança em suas capacidades. A inteligência de meus filhos precisa de incentivo. Eu acredito que o amor é a chave, mas sempre ofereci livros para eles e eu mesmo como um intermediador para as dúvidas. Aliás, adoro tirar dúvidas ao provocar mais dúvidas! Faço isso com meus pacientes que chegam a si mesmos pelas próprias conclusões que uma dúvida genuína é capaz de gerar.
Entretanto, me entristece em muito como o nosso sistema educacional lida com o conhecimento. Conforme a visita de Richard Feynman ao Brasil entre 1949 e 1966, ele teve dolorosas surpresas com nosso ensino, o qual achava uma “decoreba” sem experimentos científicos que ajudassem o aluno a desenvolver um pensamento genuíno acerca da realidade. A decoreba da qual ele trata sempre foi um sufoco para mim, pois preferia pensar sobre as coisas a ter de ter uma resposta pronta com a qual eu não me identificava. Por isso, minhas notas sempre foram ruins, porque eu achava o nosso ensino falso em todos os sentidos.
A disponibilidade para pensar é ainda um tabu no ensino brasileiro. Não sabemos fazer e talvez tenhamos horror a ele, pois preferimos diplomas e coisas do tipo. Queremos tanto os aplausos dos nossos pares que podemos esquecer o quanto isso perturba imensamente a linha de nosso verdadeiro e legítimo desenvolvimento. Eu decidi que eu deveria ajudar as pessoas a pensar, seja no contexto clínico ou mesmo no cotidiano com meus filhos. Eu sinto e vejo como isso melhora em muito as relações a minha volta e me torna também alguém importante para a sociedade. A partir de meus vetores e interesses, eu posso transmitir uma mensagem para quem, em galáxias de distância, possa ter disponibilidade em aprender. E como há pessoas ávidas em quebrar a ignorância, ao fazerem uso de uma inteligência cada vez mais sensível.
Basta um passo de cada vez, Estevan…
Referências:
PAIT, Heloisa. A experiência de Richard Feynman no Brasil e o atual ensino das ciências humanas. Estadão, 7 de junho de 2018, Caderno Sociedade. Acesso: 15 nov. 2024.
Estevan de Negreiros Ketzer é psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador do IMEC, França. Pós-doutorando em Letras pela UFMG. Email: estevanketzer@gmail.com.
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