Eu pretendia escrever um texto meio curto e meio impressionista esta semana, vocês vão me desculpar, mas é o último texto inédito do ano, 2024 não foi bolinho e eu nem tenho opinião mais para dar sobre nada (ou eu escreveria sobre como não tem como todo esse mundo de gente dando opinião sobre qualquer coisa não estar falando bobagem em pelos menos 70% das ocasiões, etc.). Mas aí ocorreu um episódio meio lamentável justamente na área em que eu me sinto um pouco mais qualificado que a média para dar opinião.
Bom, assim, lá vou fazer um dos meus resumos e contextos longos antes de entrar no centro do texto, mas é preciso. Imagino que muitos aí tenham tomado conhecimento do caso, mas o que houve foi que no dia 12 deste mês, uma quinta-feira, também conhecida como exatamente há uma semana, houve a entrega dos prêmios de melhores do ano distribuídos pela Academia Rio-Grandense de Letras (ARL). Entre as concorrentes estava a escritora Eliane Marques, que terminou vencedora na categoria narrativa longa com o seu romance Louças de Família, guardem essa informação.
O presidente atual da ARL é o escritor Airton Ortiz. Para fins de transparência, devo dizer que, enquanto era setorista de literatura no maior jornal da província, conversei com ou entrevistei Ortiz algumas vezes. Ao longo das últimas décadas, ele cavou para si um nicho como autor de narrativas de viagem antes mesmo desse gênero se tornar uma vertente popular do mercado livreiro (aliás, mais de uma pessoa nos bastidores da Feira do Livro de 2014 me comentou na época que sua popularidade e a boa vendagem de seus livros foram fundamentais para que muitos dos associados da Câmara Rio-Grandense do Livro tenham referendado seu nome para patrono da Feira naquele ano). Suas obras de viagem são escritas de modo interessante, mas não me dizem muito – eu não gosto de viajar – então, depois que parei de escrever sobre a literatura do Estado como obrigação profissional, penso não ter lido mais nenhum de seus livros. Mas é preciso que eu também diga, em favor da verdade, que nossas interações nessa ocasião sempre foram corteses e amigáveis.
A cerimônia
Mas, como eu dizia, Ortiz é o presidente da ARL. Eu não estava na cerimônia, mas segundo publicação de Eliane Marques no seu Instagram no dia seguinte, Ortiz teria declarado que “a imigração alemã e italiana foi responsável pelo pioneirismo do estado na fundação de sua academia em contraposição ao ‘restante’ (de resto mesmo) do País, de maioria “escrava”, que então, por certo, não teria contado com as luzes europeias para tal feito”. Ortiz também tentou fazer o elogio do pioneirismo literário do Estado mencionando que o Parthenon Literário, por exemplo, agremiação histórica das letras do Estado, surgiu antes da Academia Brasileira de Letras.
Embora eu não estivesse no local, tenho amigos que estavam, e assim meio que fiquei sabendo da coisa quase em tempo real, uma vez que a fala de Ortiz provocou desconforto imediato em parte da plateia, mas ninguém havia ainda se manifestado a respeito até que Eliane Marques subiu outra vez ao palco, pediu a palavra e, à medida em que outros escritores iam se juntando ao seu protesto, desabafou sua indignação com as declarações do presidente da academia:
“Não é mais possível, senhores acadêmicos, que ouçamos em silêncio afirmações como essa, de que o Rio Grande do Sul é então pioneiro em suas academias de letras em razão da imigração alemã e italiana e que o restante do país não teria seguido esse pioneirismo em razão da sua predominância escrava, quer dizer, negra”, declarou Eliane Marques, para lembrar em seguida do absurdo de se afirmar uma coisa dessas quando o primeiro presidente da ABL e farol intelectual da casa desde sua fundação era Machado de Assis.
Naquela noite, a Academia Rio-Grandense de Letras havia premiado 18 pessoas em seis categorias: literatura para a infância, literatura juvenil, romance, conto, crônica e poesia. Com a indignação provocada pelo caso, os premiados se retiraram do auditório e não posaram para a tradicional foto coletiva de encerramento da cerimônia. Sei de pelo menos um integrante da Academia, Christian David, que pediu sua desfiliação da agremiação. Devido à repercussão negativa da declaração, que virou notícia nacional, Ortiz publicou uma nota no site oficial da ARL na qual se desculpava pelo que considerou um problema de expressão devido ao improviso do momento. Eu ia colocar o link, mas parece que deu algum xabu e o site da ARL está meio que todo quebrado e fora do ar. Ok, até poderia ser um lapsus linguae se a nota não fosse tão lamentável quanto todo o episódio, porque parte, como o discurso original, de uma série de raciocínios tortos e ultrapassados em tantos níveis que eu até fiquei cansado em pensar em enumerar. Mas aí me dei conta de que o gesto de Eliane Marques também foi um gesto, de acordo com ela mesma, pautado pelo cansaço dos episódios de racismo cotidiano que acometem negras e negras o tempo todo:
“Mas o que fazer? Talvez as pessoas brancas precisem se reunir para dizer o que fazer. Não somos nós, pessoas negras, que vamos dizer: ‘Façam isso ou façam aquilo’. Não me parece que é por aí. As pessoas negras já fizeram muito, trabalhamos muito, estamos toda hora falando, dizendo, realizando, escrevendo e estudando”, disse ela numa entrevista ao Sul21 sobre o caso (você pode ler aqui).
Ao ler essa declaração, me dei conta de que o meu cansaço, o de alguém que não foi afetado diretamente nem pelo caso nem pelo racismo cotidiano, é bem menor e menos justificado do que o de Eliane Marques, então decidi que tinha, sim, de inventariar os problemas, em parte porque isso serve para tirar do caminho as justificativas. A fala foi racista porque se enraíza em um modo de pensar racista, que perdura no imaginário do Rio Grande do Sul, intensificado até mesmo por sua mídia e às vezes por parte de sua intelectualidade letrada, como se viu recentemente.
Os equívocos de base
O primeiro dos equívocos é essa ideia-feita do “pioneirismo gaúcho” atribuído ao fato de o Parthenon Literário ser mais antigo que a ABL. A afirmação é factualmente correta. Mas enganosa. O Parthenon Literário foi fundado em 1868, o que mostra que sim, a elite intelectual de Porto Alegre no período estava em sintonia com o espírito do tempo, uma vez que no século XIX muito se discutiu a fundação de clubes e academias de homens de letras e de homens de imprensa (não poucas vezes as duas categorias se sobrepunham). A maioria teve vida curta até o surgimento da ABL, em 1897. Mas isso não é de modo algum “pioneiro” na história do Brasil, porque ignora o próprio movimento academicista surgido na Bahia colonial no século XVIII – a Academia dos Esquecidos, primeiro exemplo desse movimento, por exemplo, é de 1724, veja só, criada como diálogo e resposta à fundação da Academia Real de História em Lisboa, quatro anos antes.
A vinculação do pioneirismo do Parthenon Literária com o amálgama da “colonização diferenciada do Rio Grande do Sul, alemã e italiana”, esse lugar-comum tão caro à sociedade local, também me deixou confuso. Mesmo que o Parthenon não seja tão pioneiro assim, como se demonstrou antes, ainda se fosse, tal pioneirismo nada teria a ver com a imigração alemã e italiana – no Parthenon não houve autores “italianos” e só houve dois “alemães”, Carl von Koseritz e Eudoro Berlink. Logo, a insistência na imigração “diferenciada” italiana ou germânica obedece a alguns impulsos insistentes no imaginário do Estado. Hoje é menos comum ouvir, mas até duas décadas atrás era comum até mesmo colunista de jornal ressaltar as raízes “europeias” do Rio Grande do Sul em contraposição ao “restante” do Brasil. Considerando que Portugal, o principal colonizador do Brasil, não fica na Oceania, esse tipo de elogio às raízes “europeias diferenciadas” do RS só tem um único objetivo, embora às vezes o autor da frase sequer perceba: vangloriar o fato de que o Rio Grande do Sul tem um percentual menor de “população negra” em comparação com a totalidade do país ou com outras unidades federativas.
Mas esse discurso algo ultrapassado também se assenta em um segundo equívoco que deriva também do primeiro: a minimização da contribuição negra para o Estado, resultado de um apagamento que se tornou naturalizado. Há o mito do Estado como um grande show da Xuxa no qual “não houve escravidão”. Esta poderia ser uma declaração equivocada de um apedeuta reaça qualquer, mas foi repetida e corroborada, por exemplo, por um Darcy Ribeiro, para alfinetar, nos anos 1990, a obra de Fernando Henrique Cardoso sobre A Escravidão no Brasil Meridional. Ribeiro, provavelmente por birra política, disse algo numa repostagem à Veja dos anos 1990: “Considerando que o RS não teve escravidão, ele tirou leite de pedra”.
Apagamentos
Só recentemente se tornou de conhecimento amplo (e por amplo quero dizer “chegar ao conhecimento até do pessoal que acampa no Harmonia e assiste ao JA”), por exemplo, o fato de que o Estado tem uma rica tradição de matriz religiosa africana (e um número de terreiros e centros de umbanda para rivalizar com a Bahia). Aqui eu mesmo confesso um pouco a minha ignorância na matéria, mas aí vocês vão me desculpar: eu sou ateu, então não é que eu pense mal da religião de matriz africana, é que eu não acredito em religião nenhuma, e me preocupo mais com as que têm poder para impor restrições de pensamento hegemônicas, como as cristãs em suas várias denominações.
Um último equívoco que sustenta o discurso de improviso de Ortiz e sua nota posterior já foi apontado pelo professor Luís Augusto Fischer no editorial da Parêntese do último domingo, e o tempo para entregar meu texto está estourando, então vou reproduzir um trecho do parágrafo escrito por ele:
“Nenhuma dúvida de que se tratou de racismo; mas se trata também de uma visão terrível da história, preconceituosa e inepta. Falar em ‘colonização’ feita por escravizados confunde de modo indesculpável processos muito diversos.”
Esse tópico em particular responde a um elemento presente na nota de Ortiz após o fato, tentando clarificar a questão dizendo que havia, de improviso, feito uma fala incompleta, mas que queria dizer que no resto do país, “colonizado por escravos”, o próprio instituto da escravidão teria sido responsável pela ausência da população negra nos recônditos da arte.
Eliane Marques
Bom, acho que era isso. Não esmiúço essas questões para aliviar o preconceito contido na declaração, mas para justamente mostrar como esse tipo de atitude se enraíza em fios emaranhados de ideias-feitas que colonizam há décadas o imaginário do Rio Grande do Sul, não apenas no seu segmento letrado. Não consigo não ver relação, por exemplo, entre esse episódio e muito da má vontade com que foram recebidas no início as ondas migratórias de haitianos e senegaleses que passaram a aportar por aqui a partir do fim da primeira década deste século e do início da segunda. País que sempre se jactou de sua herança construída por “povos imigrantes”, de repente o Rio Grande do Sul já não parecia querer mais tanto imigrante depois que o local de origem de muitos desses novos refugiados mudou. Era um tanto doloroso ver como muitos dos atuais descendentes das primeiras ondas de imigração italiana ou alemã faziam uma ginástica mental para tentar comprovar que os casos de seus tetravós chegando de navio no século XIX, muitos deles procurando uma nova vida em uma terra em que sequer falavam o idioma, e os atuais migrantes, expulsos de seu país por crises sociais, políticas e bélicas.
Mas, de tanto que se falou em Ortiz e da repercussão de sua fala, perde-se também um pouco de espaço para falar de Eliane Marques e de seu livro. Não conheço pessoalmente a autora, mas o livro eu li, então preciso encerrar com ele, já que a obra recebeu também o Prêmio São Paulo de Literatura como romance de estreia e o prêmio da Academia de Letras do Brasil, além de ser finalista do Minuano e do Prêmio Ages.
Louças de Família aborda o legado de uma família de mulheres negras do Interior, vulnerabilizadas historicamente cada geração a seu modo, e passeia aos saltos da memória da protagonista, Cuandu, para as vidas de sua avó, de sua tia Eluma, de sua madrinha Lilite, de sua mãe e outras mulheres negras submetidas a um ciclo de repetição de explorações mesmo quando tentam ensaiar fugas malfadadas. Eluma, a tia, morre após uma vida trabalhando como doméstica na casa de uma das famílias da elite local, mas não há dinheiro nem para pagar seu enterro. Lilite busca a redenção na Igreja, para onde leva o restante da família sem que isso mude os elementos mais problemáticos das vidas de todas as envolvidas. A mãe da protagonista desaparece aos poucos em um casamento abusivo. Mesmo a narradora, após buscar na educação a liberdade do ciclo, se vê assolada pela responsabilidade de narrar as vidas das gerações de mulheres aviltadas antes dela.
Situado na região da fronteira com o Uruguai, é um romance que também se orquestra ele próprio na fronteira da linguagem, com uma prosa que mescla português, espanhol e iorubá e com uma dicção na qual a poesia contamina a prosa, palavras se mesclam e se engavetam, e onde, num toque metaficcional, a própria narradora por vezes reclama das exigências dos revisores.
Como se vê, o gesto desafiador de Eliane Marques na noite do prêmio é de uma coerência admirável com a própria obra que a autora escreveu. Parabéns a ela e fica aqui meu apoio e meus votos de que situações como essa não se repitam.
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Reprodução do Instagram