Naquela noite, cheguei da faculdade por volta das 23 horas — era a última passageira a ser deixada em casa pela van — e fui direto para a mesa da cozinha. Estava no início do curso de Letras e, como muitos recém-formados no Ensino Médio — que ainda era chamado de Segundo Grau —, conhecia pouco dos clássicos da Literatura Universal. A aula daquele dia havia me apresentado autores e obras que eu jamais tinha ouvido mencionar, e fiquei encantada com esse universo novo que se descortinava diante de mim. Decidida a não deixar para depois a leitura proposta, esquentei um café, peguei um dicionário e comecei a decifrar os dez primeiros capítulos de O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes.
Logo nas primeiras páginas, percebi que aquele cavaleiro meio lunático não me era totalmente estranho. Ainda que vagamente, eu já conhecia Dom Quixote, Sancho Pança e seus moinhos de vento. Não sei ao certo de onde: talvez um desenho animado, um programa infantil ou um livro didático. O fato é que esses personagens já haviam cruzado meu caminho, mesmo que à distância, por meio de adaptações, citações, referências. E continuam reaparecendo — em novas formas, em novos contextos — como velhos conhecidos que mudam de cenário, mas não perdem a essência: a de sonhadores que insistem em ver o mundo com outros olhos.
Recentemente, reencontrei Dom Quixote em duas obras de uma autora contemporânea, Adriana Bandeira, que resgata o espírito do cavaleiro de Cervantes e o reinventa com surpreendente liberdade. Os dois livros — As mil e uma noites por Dom Quixote de La Mancha e Cadernos de Dulcinéia — chegaram até mim quase por acaso, mas logo percebi que o acaso tinha algo de destino. Ambos foram publicados pela Editora Bestiário, de Porto Alegre.
Em As mil e uma noites por Dom Quixote de La Mancha, lançado em 2022, Adriana costura dois grandes universos literários: o do cavaleiro espanhol que se perde nas histórias que lê, e o da astuta Scherazade, que conta histórias para adiar a própria morte. Mas, em vez de simplesmente homenagear os clássicos, a autora constrói algo novo, onde passado e presente se entrelaçam. As narrativas breves da obra evocam memórias antigas com linguagem poética e contemporânea, como se olhássemos para o passado por um espelho em movimento, que devolve as imagens com novos contornos, novas cores, novos sentidos. A leitura não exige pressa — exige entrega. É literatura que reverbera.
Já Cadernos de Dulcinéia, publicado em 2024, reúne contos, minicontos e poemas que exploram a forma breve com profundidade e contundência. Adriana domina a arte de dizer muito com pouco, esculpindo personagens e atmosferas em poucas linhas. Aqui, Dulcinéia deixa de ser a musa idealizada por Dom Quixote para se tornar uma mulher real: complexa, sensível, contraditória. Ela é força e fragilidade ao mesmo tempo, atravessada pelas dores do cotidiano e pelas batalhas silenciosas da existência. No conto de abertura, Roupa Suja, a protagonista estende roupas ao sol e pensa: “Eu estendendo as fantasias de servir. E sirvo bem à noite. O dia é para não fingir.” É nesse encontro entre o lírico e o cru, entre o poético e o concreto, que o livro encontra sua potência.
Ler Adriana Bandeira foi, para mim, como reencontrar velhos personagens em novas peles — e reconhecer neles algo que sempre esteve aqui, dentro, aguardando a palavra certa para despertar. Talvez seja isso que mais me encanta na literatura: sua capacidade de atravessar o tempo, de se renovar, de encontrar novas formas de dizer o que, no fundo, continua sendo humano e universal. Dom Quixote não ficou preso às páginas de Cervantes. Ele continua por aí, vagando em outras histórias, reinventado por outras vozes, dialogando com outros tempos — e comigo, leitora que naquela noite, diante de uma pilha de xerox e um dicionário aberto, começava a entender que certos personagens são eternos justamente porque nunca param de mudar.
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Foto da Capa: Reprodução da Internet