Na rotina de uma grande redação jornalística, vive-se a cada dia uma prova de fogo chamada deadline. É o prazo limite para fechar a edição a ser impressa na rotativa. É a linha que separa razão e insanidade. É o portal capaz de transformar uma jornada modorrenta em experiência exaustiva e traumática. É o fim de um caminho bifurcado: uma via leva ao alívio celebrado com um tímido sorriso da vitória; outra é percorrida arrastando para casa o peso da derrota e da humilhação.
É uma visão hiperbólica, claro, já rarefeita no tempo, de uma redação raiz. Nem sempre essa rotina era vivida em rotação máxima e com a adrenalina transbordando, justo dizer. Ao longo de mais de 20 anos nesta lida, vivi minhas cotas de emoções fortes como vitórias comemoradas até a derrota acachapante do dia seguinte.
A internet reconfigurou aos poucos esse cenário nos últimos anos, sobretudo com a consagração do modelo todo mundo faz de tudo um muito que, acredito, teve ganhos em qualidade e agilidade e perdas na qualidade do material produzido. Cabe ao leitor avaliar o resultado desse balanço. O jornalismo online se impôs com seu ritmo de urgência próprio. O deadline é permanente ao longo das 24 horas e são possíveis ajustes e correções em pleno ar. Publica-se logo a notícia urgente com as informações que se tem à mão. O dano às coronárias de ver impresso no dia seguinte um erro eternizado ganhou o reforço da pressão pela postagem rápida. Sair um minuto atrás da concorrência, mesmo com conteúdo melhor, não é muito recomendável para saúde física e mental.
Os exemplos não são apenas pessoais. Muitos colegas passaram e passam por isso todos os dias. O gol no último minuto que transforma o pereba em craque do jogo, ou faz ruir sobre as penas de um frango a exaltação fluida e bem fundamentada destacando o goleiro que até as voltas finais do cronômetro se impunha como um paredão. O texto praticamente pronto e lapidado vira uma maçaroca sem alma remendada em poucos minutos para não prejudicar a rodagem e a circulação. É do jogo. Vale, de forma geral, para todas as vertentes do hard news.
Nessa ciranda de emoções, vivi uma particular relação de pânico e prazer com os obituários. No jornalismo cultural, para ficar mais próximo do meu campinho de experiência, a morte de artistas é o factual que mais se aproxima da correria diante das urgências do hard news, embora o “parem as máquinas!” seja raro – o que não dá tempo de entrar no respectivo caderno, fica para o corpo do jornal.
Obituários envolvem mortes presumidas, iminentes e inesperadas. A prudência recomenda preparar o quanto antes o popular “obit” de personalidades com idade avançada ou doentes com prognósticos pouco animadores. Atenção especial para nomes nacionais e locais que não ganharão destaque nas agências internacionais. Já a morte inesperada pode lançar ao desespero a quem a ela se dedicar, ainda mais se a notícia chegar num plantão de fim de semana, casos, entre tantos outros, de Cássia Eller (2001), Amy Winehouse (2011) e Belchior (2017), artistas merecedores de empenhadas forças-tarefas para prestar-lhes a justa despedida. Há casos de coincidências históricas, como os gigantes do cinema Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni que morrerem no mesmo dia, 30 de julho de 2017, impondo aos editores a disputa por seus merecidos e equilibrados espaços.
Em dia movimentado no noticiário, um obituário pode virar nota aquém da importância do falecido; outros podem ocupar área generosa além do merecido se um dia estiver em marasmo. Tem obituários que resistem anos nas gavetas, envelhecendo com menos saúde do que seus personagens, ao ponto de precisarem ser atualizados quando a hora fatídica enfim chegar. Tem os que acabam se transformando em laudatórias homenagens ainda em vida com mínimas adaptações. E também tem o caminho inverso. O conteúdo especial preparado para uma efeméride que o homenageado não vive para celebrar pode virar uma despedida épica
Escrevi uma quantidade razoável de obituários, entre os antecipados e com tempo justo para uma boa pesquisa e texto menos burocrático, e os urgentes, tanto de gente sobre quem nada sabia, como um jovem ídolo sertanejo, quanto de artistas de quem era fã e conhecedor da vida e obra, o que sempre ajuda na elaboração de um perfil menos protocolar. E os melhores foram aqueles escritos sobre alguns de meus ídolos da música e do cinema, com o bafo na nuca soprado pelo cronômetro, mas com o fluxo de ideias azeitados da primeira marcha ao ponto final. Dos que não deram certo, menos pelo tempo e mais pra falta de inspiração, esqueci.
O Google, o material de arquivo e as agências ajudam a fazer um obituário robusto de qualquer nome indexado pelos algoritmos em tempo razoável. Mas assim serão vários. E quem fará bons textos sobre personalidades pouco badaladas e sobre os anônimos donos de vidas extraordinárias, como define William McDonald, o respeitado editor de obituários do jornal New York Times?
Não temos no Brasil a tradição de ver na redação dos obituários redatores muito experientes e cultos apoiados por pesquisadores dedicados. Esforços pontuais são feitos nos espaços regulares em que as trajetórias de todos os mortos acabam se parecendo em homenagens que parecem seguir uma bula.
O New York Times, ao contrário, consagrou o obituário como grande reportagem, reservando ao perfilado um texto único em qualidade e informação. Uma amostra deste trabalho está compilada por McDonald no livro O Livro dos Mortos do New York Times: Obituários de Pessoas Extraordinárias, com 320 textos impressos dedicados a nomes que vão de Theodore Roosevelt a Joseph Stalin, de Marilyn Monroe a Malcolm X, de Coco Chanel a Prince – à venda em edição importada nas livrarias virtuais, o volume dá acesso a outros 10 mil obituários na versão digital. Outro livro referencial desta calejada editoria, creio que já fora de catálogo, é The Last Word – The New York Times Book of Obituaries and Farewells: A Celebration of Unusual Lives.
A tradição de excelência na reverência aos mortos é um dos pilares do New York Times, como mostra o belo documentário Obit (2017). No filme, a diretora Vanessa Gould revela a história e os bastidores da editoria de obituários do jornal, que costuma abrigar profissionais veteranos e premiados guiados pela missão de sublinhar que toda vida é merecedora de uma grande história.