Dizer não é um ato emancipatório.
Quando criança, todos nós tivemos a famosa fase de falar “não” pra tudo. É aquela cena clássica: “Filho, come os legumes”. “Não”. “Tá bem, filho, então come só o resto da comida”. “Também não”.
Nesta fase da vida, é mais importante o ato de dizer não do que o conteúdo que está sendo negado. Não se trata tanto de comer ou não a salada, de arrumar ou não o quarto, de ir ou não visitar os avós. Pouco importa, desde que se possa dizer não para os pais.
O que está em jogo aqui é a possibilidade de não responder diretamente ao que é demandado. Quando somos pequenos e dizemos “não”, no fundo estamos querendo mostrar para os nossos pais que nós somos seres independentes deles e que temos nossa própria vontade. Dizemos “não” também como uma forma de testar o amor deles por nós: “Será que serei amado mesmo não fazendo tudo o que querem que eu faça?”.
Até certo ponto de nossa história, temos a tendência de supor que só seremos amados enquanto estivermos adequados ao que é esperado de nós. Por isso que sempre preocupa quando uma criança não consegue dizer não, quando os pais não reclamam que seu filho ou filha é manhento, quando não se queixam de que ele ou ela “faz birra”. Aquela criança excessivamente comportada, que faz tudo o que é dito, que é sempre tão prestativa, está pagando um preço muito caro pelo amor que recebe: paga com a sua própria individualidade, faz uma escolha – inconsciente, claro – pelo amor do outro em detrimento de sua vontade própria.
Com o tempo, essa dinâmica vai se tornando mais complexa. Na adolescência, quando passamos a ter uma circulação por ambientes fora do discurso familiar, também vamos matizando e repensando o quanto temos mesmo que dizer não a tudo, além de também nos reposicionarmos com relação a todos os “sins” que nos pareciam incontornáveis para nos sentirmos desejados.
O que não quer dizer que isso se torne simples. Afinal, nós não nos desenvolvemos em linha reta, como seria o mais óbvio: nós amadurecemos como árvores, sobrepondo camadas sobre outras camadas, mas mantendo o núcleo intacto. Quanto mais velha uma árvore, maior o seu diâmetro. Quanto mais nós envelhecemos, mais nossa infância nos parece distante, mas ela segue ali, como um ponto de origem do qual nunca nos despedimos.
Esse é um dos motivos pelos quais muitas pessoas sentem que nunca se sentem realmente adultas, se veem performando uma certa maturidade que não conseguem ver em si mesmas. Neste sentido, podemos arriscar a dizer que ser adulto não implica distanciar-se da infância, justamente pelo contrário, ser adulto é poder fazer as pazes com esta criança que nós sempre seremos.
Todos fazemos birra e somos manhosos, nós só aprendemos formas mais adaptadas de fazer isso, mais condizentes com as demandas da cultura.
Mas isso não impede que estejamos sempre às voltas com o que é esperado de nós, com o papel que precisamos interpretar para sermos amados, já não mais pelo pais (na melhor das hipóteses), mas pelos nossos pares, nossos colegas de trabalho, nossos amigos, enfim, pela sociedade.
Se na infância os nossos “nãos” tinham a ver com rotinas da casa (“arruma teu quarto”) ou do corpo (“veste um casaco”), quando adulto, nossas birras muitas vezes são direcionadas a imperativos da cultura.
Isso pode parecer paradoxal, mas apesar de fazermos tudo para sermos aceitos, também a completa adequação ao que é esperado é algo assustador. Estar plenamente de acordo com os imperativos da cultura implica pagarmos o preço altíssimo da nossa própria singularidade.
Quando só dizemos “sim”, deixamos de lado o nosso próprio desejo, nos identificando a uma paródia do que supomos ser desejado de nós. Nos tornamos um arremedo, uma peça acéfala em uma maquinaria cuja estrutura completa desconhecemos e que não se importa tanto conosco como gostaríamos.
Se na infância nosso desejo de sermos amados é estruturante – é importante nos sabermos desejados -, permanecer nesta ânsia por adequação na vida adulta talvez não seja o melhor dos caminhos. Por outro lado, também a posição de só dizer não é também uma forma de alienação às avessas, pois ainda mantém a referência centrada nos mandos e desmandos do discurso social em que estamos inscritos.
A possibilidade de estar mais próximo de seu próprio desejo implica esse diálogo sem fim entre o que supomos ser esperado de nós e aquilo que julgamos que realmente queremos. É justamente neste intervalo que reside o que nos é mais íntimo. Em um equilíbrio bastante instável, mas cuja impermanência é a própria marca da humanidade.
Foto da Capa: Cottonbro Studio / Pexels
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