O direito à livre expressão e a uma imprensa livre e independente com certeza são pressupostos essenciais para a existência de um estado verdadeiramente democrático. Todavia, isso não significa que não possam existir agressões, mentiras, calúnias, difamações, etc. Na teoria, é muito fácil, para quem não é o juiz, julgar tais casos.
Entretanto, além da prova do que se alega, há de se convencer os juízes de diversos tribunais, em razão dos diversos recursos interpostos, sobre qual é o melhor direito aplicável ao caso concreto. Como na maior parte das vezes, há uma linha tênue sobre o que é permitido ou vedado, especialmente quando também está em jogo a honra de alguém e a avaliação se houve ou não dano moral. Na maior parte dos casos, não é tarefa fácil para os julgadores realizarem a ponderação entre o princípio que consagra a liberdade de expressão e de informação jornalística com o princípio da intangibilidade do patrimônio moral das pessoas.
Ressalte-se que, até mesmo no Supremo Tribunal Federal (STF), temos com frequência divergências de entendimento entre os ministros, com muitos acórdãos, cujas decisões foram por maioria e não por unanimidade, sobre os mais diversos fatos, entendimentos jurídicos e assuntos.
Um julgamento que reflete bem a possibilidade de entendimentos diversos sobre a interpretação da lei e sobre os fatos e suas consequências foi o que ocorreu, em 21 de fevereiro de 2025, referentemente ao Segundo Agravo Regimental na Reclamação Nº 28157, pelo STF, sobre caso que envolveu uma desembargadora e uma advogada conforme noticiado no site do STF.
Esse agravo regimental foi interposto contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que havia mantido a condenação de uma emissora de televisão e de jornalistas por reportagem considerada ofensiva. Essa reportagem narrava a discussão entre a polícia e uma desembargadora que, juntamente com uma amiga advogada, foram paradas em uma blitz da Lei Seca e conduzidas para a Delegacia de Polícia, conforme publicado no Boletim de 2025 do STF EM FOCO.
De acordo com a ementa desse julgamento da Segunda Turma do STF, de relatoria do Min. Nunes Marques e que teve como redator o Min. Gilmar Mendes, “A reportagem em questão tratava de discussão de magistrada com autoridades policiais, incluindo comentários considerados desnecessários e vexatórios pelos jornalistas. O STJ entendeu que a matéria excedeu os limites da liberdade de imprensa, configurando ato ilícito. A reclamante argumenta que a decisão do STJ violou o entendimento firmado pelo STF na ADPF 130, que trata da liberdade de expressão e de imprensa. II.”
A grande discussão desse julgamento foi saber se a condenação por danos morais, decorrente da reportagem jornalística, pode configurar censura ilegítima que viola a liberdade de expressão e de imprensa, conforme jurisprudência do STF, em especial no julgamento da ADPF 130. III.
Ao decidir, a segunda Turma do STF, em suas razões de decidir, justificou que “A liberdade de expressão e de imprensa é direito fundamental, pilar do sistema democrático, sendo garantida constitucionalmente, mesmo que a crítica seja contundente, especialmente contra figuras públicas.”
Outrossim, a Segunda Turma do STF, nas razões de decidir, salientou que “no julgamento da ADPF 130, o STF, ao entender não recepcionada a Lei de Imprensa, assentou que a atividade jornalística deve ser exercida sem regulação, com o fim de assegurar a liberdade de expressão de forma ampla. Todavia, a liberdade de expressão não é absoluta. Nas situações de alegada ofensa à honra, deve-se proceder à ponderação entre o princípio que consagra a liberdade de expressão e de informação jornalística, de um lado, e o postulado que assegura a intangibilidade do patrimônio moral das pessoas, de outro. Também foi destacado que “A vedação à censura estatal estabelecida nos precedentes desta Corte não se restringe apenas à censura prévia, mas abrange toda e qualquer forma de censura ilegítima, mesmo que posterior, sobretudo considerando que “a excessividade indenizatória já é, em si mesma, um poderoso fator de inibição da liberdade de imprensa” (ADPF 130, p. 48).
Importantíssimo esse trecho sobre a inibição da liberdade de imprensa, pois indiscutivelmente há o receio de que divulgar alguma notícia, ainda que verdadeira, relacionada a alguém com poder, pode ser causa de pagamento de elevadas indenizações por danos morais. Esse temor, obviamente, cerceia a atividade jornalística, tão importante para o combate a diversos tipos de crimes, principalmente aqueles cometidos por poderosos. Se a imprensa não contar os fatos, ficará bem mais fácil para os grandes criminosos, integrantes de complexas e bem estruturadas organizações criminosas, ficarem ilesos e, se políticos, se reelegerem para continuar a roubar o dinheiro público, leia-se “do povo”.
Imagine para um simples jornalista, que geralmente luta com dificuldades para sobreviver, o pavor que é receber uma citação de uma ação para que ele venha a responder por danos morais, ajuizada por alguém com dinheiro ou poder, que contratou um bom e caro escritório, em razão de ele ter contado a verdade apenas. Isso obviamente inibe o trabalho da imprensa, sem o qual a democracia não se sustenta. Como é cediço, nos países autoritários, ou seja, sob regimes autoritários, a imprensa sempre paga um preço muito alto. O sucesso de todo governo autocrático depende da censura ou silêncio da imprensa.
No caso do julgamento acima mencionado, não foi mencionado nada de grave cometido pelas autoras da ação indenizatória e, por outro lado, a Segunda Turma, com relação aos réus, decidiu que “a publicação contestada não desbordou dos limites da crítica ou opinião jornalística. Não houve excesso na atuação dos jornalistas, que atuaram no legítimo exercício profissional de informar seus leitores, noticiando fato de interesse público, ainda que afincado de crítica em sua divulgação.”
Esse julgamento também foi bom porque abordou sobre o valor a ser pago como indenização, algo que às vezes pode ser desproporcional em razão de quem paga ou de quem recebe.
Relevante a Segunda Turma do STF ter tocado no assunto “valor da indenização” e considerado que “A responsabilidade civil imputada no presente caso, resultando na condenação de jornalistas e da respectiva empresa televisiva ao pagamento de indenização de quantia vultosa (R$50.000,00 para cada beneficiária, valor esse que atualizado ultrapassaria a marca de R$200.000,00, cf. eDOC 9), em razão de suposto dano à honra decorrente de divulgação de matéria jornalística dotada de comentários opinativos de caráter supostamente pejorativo, representa ofensa ao pilar constitucional do livre exercício da imprensa, assentado no julgamento da ADPF 130. IV.”.
Como salientei em um artigo publicado aqui na Sler, sobre danos morais, em 12 de setembro de 2022, no Brasil vigora o entendimento de que a indenização deve ser o suficiente para compensar a vítima pelo dano moral, não poderá, portanto, caracterizar o enriquecimento sem causa, e tampouco ser irrisória. Desse modo, deverão ser verificadas as condições de quem pede a indenização e de quem pagará, a gravidade de cada caso, suas circunstâncias, o grau de culpabilidade do agente, a culpa concorrente da vítima. Isso pode ser bastante injusto, pois se uma pessoa rica ofender uma pessoa pobre, a indenização a ser paga por ele dificilmente irá fazer muita falta, enquanto que se a ofensa for cometida por um pobre contra um rico, a indenização deverá ser alta para que exista a correta compensação. Fica barato para um rico ofender um pobre, e caríssimo para um pobre retrucar ou fazer o mesmo. É um Brasil bem complicado em diversos sentidos.
Tenho esperança de que esse julgamento seja um bom balizador para o julgamento de demandas semelhantes, pois me pareceu bastante justo e ponderado, e é importantíssimo que a imprensa cumpra seu dever de informar, possa trabalhar livremente, sem censura e sem medo de contar os fatos. Sem liberdade de imprensa, não há democracia.
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