Reminiscência como introito: alguns anos atrás (não muitos), colegas pesquisadores brasileiros levaram dados acerca do ofício profissional de prostitutas brasileiras, em evento internacional voltado para pesquisas e teorização sobre a atividade de trabalho humana, e encontraram resistência e crítica do tipo “a prostituição NÃO é ofício profissional”, e NÃO deveria figurar como foco de análise de quem se interessa, justamente, por esses ofícios – mesmo no caso dos chamados “trabalhos sujos”, o “dirty work” da sociologia norte-americana dos anos cinquenta do século e milênio passados. Veja o leitor que, mesmo em âmbito acadêmico, a prostituição enfrenta banimentos, sob os mais variados pretextos encobridores do nó da questão, inexoravelmente moral.
Poderia, ainda à guisa de esquentamento rumo ao debate argumentativo que se seguirá, lembrar que a profissão de prostituta aparece na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), o que lhe confere, na pior das hipóteses, status de “existente” – mas isso, para muitos, não agregaria nenhum valor discursivo-argumentativo ao ponto zero aqui em debate: a prostituição deveria / poderia existir? Seria uma profissão, ou uma “antiprofissão”? – expressão que ouvi da boca daquele colega naquele rol dos que se opuseram à consideração desse ofício milenar (vide textos bíblicos).
Não saberia discorrer acerca do que seria uma “antiprofissão”, mas tenho alguns princípios que dirigem meu recorte acerca do que seriam “profissões”, ou, como prefiro chamar, ofícios profissionais. Uma atividade profissional (mesmo com representação social “suja”) é digna dessa denominação quando e se, muito resumidamente: a) comporta sujeitos-trabalhadores reais, de carne e osso, com suas biografias, sofrências, adoecimentos, microculturas; b) é exercida num contexto social, histórico e cultural específico, o que lhe dá a devida tangibilidade transindividual; c) comporta um conjunto explícito (corporificado em prescrições no mais das vezes escritas) e implícito (aquilo que se deve e pode fazer para ser um “bom”/ uma “boa” profissional, aquilo que se “sabe”, principalmente quando se é um profissional experimentado) de regras referentes ao fazer profissional. Este último polo, de natureza abstrata (apesar de dramaticamente real), se corporifica nos coletivos de trabalho – aquela instância formada pelo conjunto de outros trabalhadores de carne e osso, através dos quais costuma falar o conjunto de regras e expectativas mencionados nesse último tópico, que eu costumo chamar de “gênero profissional” (sem ter sido eu quem inventou a terminologia, diga-se de passagem…).
Falemos um pouco mais sobre os chamados “trabalhos sujos”. Dito de forma bem simples, são aquelas modalidades de trilha profissional que não costumam ser mencionadas pelas crianças quando algum adulto lhes pergunta: “O que você vai ser quando crescer?” Qualquer criança que respondesse a tal questão com respostas do tipo “Prostituta”, “Lixeiro”, “Tanatologista” (trabalhadores a cargo da inspeção de cadáveres em serviços de verificação de óbitos ou institutos de medicina legal), “Carrasco ou verdugo” (em países que admitem a pena de morte), dentre outros, tal criança, repito, seria provavelmente encaminhada para cuidados de saúde mental com profissional da psicologia… Os trabalhos ditos sujos são aqueles, muitas vezes, admitidos como necessários, mas… sujos. Repugnantes (sob as várias matizes do termo). E precarizados – e é aqui que se insere o interesse específico de vários estudiosos do tema – eu entre eles. Nem todo trabalho precarizado é sujo (haja visto o caso clássico dos docentes), mas todo trabalho sujo é, quase que por definição, precarizado. Pois até estudiosos eventualmente os condenam ao limbo da não-consideração…
O ofício profissional da prostituição, que historicamente tem abarcado principalmente trabalhadoras mulheres, mas inclui igualmente homens, é um ofício que existe, mesmo a contragosto de muitos, se constituindo em exemplo de precarização da atividade profissional. Além do opróbrio societário, o ofício de prostituta e prostituto abarca riscos exógenos, como aqueles relacionados à segurança física desses trabalhadores (frequentemente vítimas de agressões das mais variadas), e endógenos, como aqueles relacionados à conciliação de vida profissional e privada. E é justamente em termos dessas ameaças exógenas veladas que surge, pela enésima vez, iniciativa social e política concretizada por Projeto de Lei proposto por parlamentar do PL (Partido Liberal), de número 778/2025, que “criminaliza a prostituição nas ruas”. O projeto é sagaz: não ousa criminalizar o ofício de prostituta/o como tal, e sim algo que deliberadamente mescla a oferta dos serviços no espaço público e o “prostituir-se em via pública” (!!!). De fato, o que está em jogo é a “proteção do anseio de viver em paz das famílias, a proteção dos ‘filhos pequenos a presenciarem ofertas de serviços sexuais’, do que decorreria, a médio e longo prazo, ‘desvalorização dos imóveis’. Vê-se que o que está em jogo é a proteção da Tradição, da Família, da Propriedade, na sacralidade estereotipada em que se fundem. As prostitutas, em seu ofício, servem pela enésima vez como bruxas e bruxos a serem responsabilizados pelos pecados todos do mundo – na conveniente oclusão daqueles que, desde a penumbra, lhes pagam e agenciam. Alternam-se entre o lambuzar-se com as Lilis e o apedrejar as Genis.
A danação a que se quer circunscrever o ofício da prostituição é de uma hipocrisia tão antiga quanto risível (apesar de frequentemente tornar-se trágica). Trata-se de ofício profissional digno dessa classificação, e que, inclusive, como tantos outros, vem atravessando as intempéries da contemporaneidade, como pandemias e banimento da troca de fluidos, chegada de manequins infláveis ou personagens digitais assistidos por inteligência artificial generativa, e por aí vai. Antes de demonizar o ofício em nome de certas sacralidades duvidosas, caberia recuperar aspectos mais centrais da polis contemporânea, como a ampliação dos espaços públicos, o respeito à vida privada das pessoas, o bom senso e responsabilidade no zoneamento urbano, a boa sacralidade da memória coletiva. A coragem de bem discernir onde estão de fato os moinhos de vento a combater.
Ao leitor que chegou até aqui, peço que reflita com parcimônia, honestidade moral e intelectual e bom senso dos mais prosaicos, e me diga: em que medida a prostituição representa uma afronta efetiva à moral e aos bons costumes da família média brasileira, e mesmo alhures? Como poderia ser uma afronta, se muito de suas fontes de proteção e manutenção originam-se, muito discretamente, daqueles mesmos salões supostamente ameaçados por este ofício? Quem vai ter a cara de pau de arremessar a tal primeira pedra?
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Foto da Capa: Gerada por IA.