Qual é a diferença entre uma pessoa LGBTQPN+ ser chamada de bicha louca, uma pessoa idosa ser chamada de velha sem vergonha, uma negra de crioula suja, uma mulher de mal amada e burra e uma pessoa periférica de pobretão?
Em todos esses exemplos, violências estão sendo cometidas. Seus direitos estão sendo desrespeitados. A diferença entre essas violências é a de que algumas já foram criminalizadas, outras ainda não.
Crime x Violência
Trago esses exemplos porque venho escutando sobre violência, criminalidade e segurança pública como se fossem conceitos parentes ou até sinônimos. Porém, percebam o quanto o conceito delas é diverso.
Nem sempre a violência se transforma em crime. O que não significa que ela é menos danosa. Pode causar danos, traumas, dores, mas não necessariamente ir parar na delegacia.
Para e pensa na tua infância, adolescência, juventude e outros inúmeros momentos da vida com pais, irmãos, amores, amigos, chefes e colegas de trabalho. Muitas micro, pequenas e, talvez, grandes violências venham à tua cabeça. Quem sabe lembre de situações em que você foi o agressor ou a agressora. Em todas elas, de uma forma ou outra, foi marcado ou marcada, para o bem ou para o mal.
O que acontece quando a violência se transforma em crime?
Prefiro formular outra pergunta: o que poderíamos fazer para prevenir o crime? Para responder a essa pergunta, acredito ser importante ter clara a diferença entre crime e violência. Só conseguiremos viver numa sociedade com menos crimes na medida em que conseguirmos construir uma sociedade menos violenta, e a violência é produzida por diversos fatores. São neles que encontraremos as raízes para diminuir crimes e uma sociedade menos violenta.
*Conduzido por Richard Neugebauer, da Universidade Columbia, um estudo clássico sobre nutrição e gravidez com 100 mil pessoas, algumas mulheres mal nutridas e outras não, descobriu que os filhos de mulheres desnutridas tinham 2,5 vezes mais probabilidades de desenvolverem Transtorno de Personalidade Antissocial.
*Estudos apontam que a privação e a má qualidade de sono estão associadas a comportamentos mais agressivos.
*Conforme o pediatra e neurocientista Dr. Charles Nelson, a falta de estímulos nos primeiros anos de vida, que costuma ocorrer em ambientes institucionais, pode provocar consequências como QI diminuído, problemas de linguagem e transtornos emocionais, todos eles já relacionados por estudos a comportamentos violentos.
*Especialistas apontam que a iluminação pública é importante para a diminuição da criminalidade.
Medellín, a cidade que chegou lá
Veja a história de Medellín, na Colômbia, que reduziu a violência por meio de políticas de segurança, investimentos em infraestrutura e programas sociais.
Medellín é considerada um exemplo de sucesso no cenário global na transformação de uma cidade violenta para um exemplo de segurança cidadã e redução da desigualdade social.
Mas lá foi feito um grande esforço na prevenção da violência, que resultou na diminuição da criminalidade. Investiram na inteligência policial, melhoria do transporte público, na construção de escolas, parques e bibliotecas, no sistema de “metrocables” (sistema de metrô público e teleféricos). Além disso, associaram programas nas áreas de educação, assistência e políticas sociais (leia mais aqui).
Houve, claro, todas as atividades tradicionais de policiamento e segurança pública, mas percebam que só obtiveram sucesso porque Medellín não mirou o mesmo de sempre nem o curto prazo, foi corajosa. Isso foi a inovação. Tecnologia social.
Ano passado, anunciou que obteve o menor índice de violência de todos os anos de trabalho feito. Escute aqui o Conversa com Bial com o ex-prefeito da cidade, Alonso Salazar, e Fernando Veloso, especialista em Segurança Pública.
Cortisol alto: pega e mata ou corre pra longe?
Meu sentimento é de que, com o nosso alto nível de estresse diário, o cortisol está tomando conta da sociedade e ninguém está parando para pensar, e estamos vivendo em permanente estado de fuga ou luta (ou paralisia). E, quando vem à baila o assunto “segurança pública”, “violência”, “criminalidade”, as pessoas sentem medo e só conseguem acionar a mesma estratégia: repressão, repressão, repressão.
Tem um grupo em particular que me preocupa: POP RUA
Tenho ficado cada vez mais preocupada com discursos que escuto por aí e projetos que leio que andam aprovando ou querendo aprovar Brasil afora com relação à população de rua, que – por preconceito – historicamente é ligada à imagem de vagabundagem, vadiagem, crime e violência. Grupo de pessoas extremamente vulneráveis e que, como já escrevi numa outra coluna aqui na Sler, possui um perfil diverso e muitas justificativas para se manter nas ruas, mas a criminalidade não é a realidade da grande maioria.
Você vai comigo, mesmo que não queira (e mesmo que eu não tenha vaga?)
Projetos que retiram a autonomia e a liberdade de pessoas nas ruas, pois entregam para o Estado a possibilidade de decidir unilateralmente sua “internação humanizada”! Uma possibilidade de limpeza seletiva, higienização urbana desejada por aqueles que olham as misérias nas ruas e constatam a desigualdade social abissal no país. Afirmo isso com base no quê? Na completa falta de estrutura de internação na área da saúde mental para acolhimento desta população e da população em geral.
Você é bandido/a até que prove o contrário
Projetos que criminalizam pessoas em situação de rua de antemão. Em Porto Alegre, esse “projeto”, significativamente coordenado pela Secretaria de Segurança Pública, tem o nome de “Choque de Ordem”. Em outras cidades do país, ele também existe em diferentes nomes e formas, mas vão todos na mesma direção: a abordagem das pessoas em situação de rua como se fossem criminosas (muitas vezes com violência física), sem direitos, tendo arrancados seus pertences, sendo enxotadas de um lado para o outro da cidade, pois o Estado não oferece local decente nem em número suficiente para a população de rua.
Se correr, o bicho pega, se ficar, o bicho come
Projeto que criminaliza pessoas que ocupam espaços públicos ou privados vazios para morar (leia aqui), proibindo essas pessoas de participar de programas habitacionais; contratar com o Poder Público Municipal; receber benefícios ou incentivos fiscais; ser beneficiário de programas de assistência social promovidos pelo município; receber auxílios, benefícios e participar de demais programas do Executivo municipal; inscrever-se em concursos públicos ou processos seletivos para nomeação em cargos, empregos ou funções públicas no âmbito do Município; e ser nomeado em cargos públicos comissionados no âmbito do Município. O contraditório é que essas pessoas, para não estarem nas ruas, ocuparam prédios vazios. Agora, a Câmara de Vereadores quer mandá-las de volta para as ruas, porém não oferece solução, além da criminalização.
Não tinha casa, não tinha teto, comida nem pensar
Projetos que criminalizam a distribuição de alimento para a população de rua. Em Porto Alegre, já houve tentativas de retirada de grupos de distribuição de refeição de seus pontos, inviabilizando seu trabalho, que felizmente terminaram em acordo. Mas em outros municípios, como em São Paulo, essa tensão existe permanentemente.
Primeiro destrói, planeja depois, as melancias se ajeitam de que jeito?
Projetos que mantêm a situação de vulnerabilidade e precarização da situação. Logo no primeiro dia da gestão, o Governo do Sebastião Melo propôs a extinção da Fasc e, ao cabo de algumas semanas, teve ela aprovada pela Câmara de Vereadores, porém ela não foi aprofundada, dialogada com as partes envolvidas. A extinção da FASC, justificada pela modernização da gestão pública e racionamento de gastos, pode ser compreendida, mas não veio acompanhada de uma proposta integrada tratando a respeito do incremento de qualidade, políticas e ações relativas ao atendimento da população mais vulnerável da Capital de Porto Alegre, que hoje mais do que nunca, cresceu e precisa de respostas à altura. Afinal, na PL 001/25 não se encontram respostas para questões essenciais, por exemplo:
*Como vai funcionar a Secretaria de Assistência Social? Que estrutura vai ter? Vai executar os programas e serviços ou vai só gerenciar convênios?
*Como ela será mantida e ampliada conforme as necessidades vigentes?
*Quais serão os critérios, como e onde os servidores com expertise técnica estarão alocados? Serão mantidos nos espaços técnicos ou, talvez, cargos em comissão poderão ocupá-los?
A extinção da FASC sem a discussão pública e o detalhamento da proposta de criação da Secretaria de Assistência Social é fato. Agora, ainda espero respostas claras sobre como será estruturada a nova Secretaria de Assistência Social, realizando a discussão pública sobre o destino dos servidores e do patrimônio da FASC, explicitando como se dará o controle social e a gestão dos programas, serviços e equipamentos, detalhando inclusive como será realizado o acompanhamento e a fiscalização dos serviços parceirizados e conveniados, responsabilidade da qual não pode se isentar a nova secretaria.
Afinal, é crucial priorizar o fortalecimento e a expansão dos serviços existentes para atender às demandas crescentes da população vulnerável. Com relação à população de rua, a Gestão Municipal já vinha enfrentando graves problemas para atender às políticas públicas adequadas na cidade, tendo seu ápice em abril de 2024, quando ocorreu o incêndio na Pousada Garoa, que resultou na morte de 11 pessoas. Desde maio do ano passado, com a tragédia vivida por todos os cidadãos da cidade, a cidade vem enfrentando o triste aumento desta população, sem ainda conseguir atender à demanda existente. Apenas considerando o Cadastro do SUS, em abril de 2024 (anteriormente à enchente), havia 4.592 pessoas vivendo na rua em Porto Alegre; em dezembro, este número se ampliou para 5.373. Ressalta-se que aqui não constam pessoas em situação de rua não inscritas no CadUnico e nem mesmo as que, inscritas, não se declaram em situação de rua.
No discurso de posse do seu secretariado, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, afirmou que entre suas três prioridades de governo, uma delas era dar melhor acolhimento à população de rua. Considerando os acontecimentos nos 4 anos de seu primeiro mandato e o incêndio dos 11 mortos na Pousada da Garoa ocorrido em abril de 2024, criei grandes expectativas de mudança. Passados quase dois meses desse seu segundo mandato e todos esses projetos que sua gestão já aprovou, colocou em pauta ou que vem apoiando, criminalizando a população de rua, fico em dúvida sobre o conceito de “acolhimento” que o Prefeito possui no seu vocabulário.
Ao menos, para você, espero que tenha sido possível oferecer a possibilidade de um olhar diferente para esses temas. Ou, se não for tão diferente, pelo menos que possa ter apresentado algum argumento ou justificativa que tenha feito você refletir a respeito, feito seu cortisol – pelo tempo de leitura desta coluna – baixar.
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Foto da Capa: Fernando Frazão / Agência Brasil