Tendo crescido nos anos 1970 numa cidade da metade Sul, não creio que eu vá de fato escandalizar ninguém ao comentar que naquela época uma das coisas que eu ansiava muito por fazer assim que tivesse idade para tanto era soltar foguetes. Não os busca-pés que corriam atrás dos calcanhares dos incautos, ou as tiras vermelhas com manchas redondas de espoletas que usávamos para brincar com nossos revólveres de brinquedo, que eu já conhecia. Eu queria lançar um foguete daqueles que se erguiam para o alto como uma espada mágica, ver o chiado rápido de sua ascensão aos céus e ouvir o estrondo que ele produzia quando marcava a noite com sua ruidosa detonação. Coisas de guri do interior em um tempo e lugar que, comparado ao atual espírito do tempo, talvez carregue uma inevitável pátina de barbárie, como uma foto antiga do Velho Oeste (em que nossos responsáveis nos davam suco Tang, usavam Neocid em nosso cabelo para matar lêndeas ou nos deixavam dormindo a noite toda com espirais de Boa-noite queimando para afugentar mosquitos).
Um dos motivos pelos quais nunca cheguei a concretizar essa aspiração secreta de infância talvez tenha a ver com o fato de que os exemplos que me despertaram a curiosidade não estavam exatamente em casa. Meu pai era cego e, portanto, não estava entre suas diversões ocasionais soltar foguetes. Quem eu já havia visto fazer isso eram vizinhos como o dono de mercearia que morava na casa da frente ou alguns vizinhos de meu avô (aos cinco anos de idade, me lembro com alguma nitidez da barulheira ensurdecedora que o foguetório da vizinhança provocou quando o Inter ganhou o Brasileirão de 1979, uma festa que marcou minha infância de menino colorado).
Jornalismo
Bom, o fato é que provavelmente a vontade de soltar foguetes foi esmorecendo à medida que eu entrava na adolescência, tanto é assim que nunca soltei nenhum, algo que, morando no Interior, tenho certeza de que conseguiria fazer se realmente estivesse interessado. Os anos passaram, eu me mudei para Porto Alegre, fiz outras coisas que nunca havia feito antes, estudei para me formar jornalista, trabalhei, fiz bicos, cortei um dobrado para defender uns trocados durante um certo período e aí comecei a trabalhar, primeiro esporadicamente, depois com mais constância, na profissão que havia escolhido. Até que, no fim de dezembro de 1996, durante um plantão de fim de ano na redação em que recém havia começado, me mandaram fazer um acompanhamento e uma matéria mais aprofundada dos efeitos de acidentes com esses foguetes comercializados em floras quaisquer e lançados ao céu por amadores. E depois disso, eu nunca mais tive a vontade de soltar foguetes.
Não sou do tipo que guarda recortes, mas as matérias específicas desse período, as primeiras que eu publiquei, eu arquivei, provavelmente deslumbrado com as primeiras experiências de ver meu nome em tinta impressa. Depois disso, me tornei mais cínico com as emoções egóicas aparentemente inescapáveis da profissão, mas ainda guardo aquela pilha de primeiros recortes quase como um memorial ao jovem ingênuo que as compilou lá por 1996, 1997. Quando decidi que escreveria hoje sobre fogos, fui até esse recorte específico para ajudar a memória, e me dei conta de que boa parte das histórias de que eu me lembrava daquelas visitas às unidades de queimados do Hospital Cristo Redentor ou do HPS permaneciam inalteradas.
Os entrevistados
Um dos meus entrevistados na época era um senhor na casa dos 50 anos chamado Adelino, servente de pedreiro que havia finalmente conseguido a perspectiva de um serviço mais longo assegurado para iniciar o ano. Decidiu, para comemorar, gastar R$ 17 que havia recebido de um biscate feito na semana entre Natal e Ano-Novo para comprar dois daqueles foguetes amadores. Soltou o primeiro às 18h do dia 31 de janeiro de 1996, enquanto bebia algumas doses de cachaça. Pegou no sono e foi acordado à meia-noite pelo barulho dos fogos dos vizinhos. Saiu então, meio tonto, para acender seu segundo foguete e ele detonou em sua mão esquerda. Quando falei com ele, no Hospital Cristo Redentor, ele já havia saído da cirurgia cujo resultado havia sido a amputação total de um dedo e a perda parcial de outro.
Na mesma reportagem, também conversei com outro senhor chamado Marinho, morador de São Leopoldo, que havia decidido estourar um rojão pela primeira vez na vida, para ver como era. Comprou um foguete de três tiros que explodiu em sua mão esquerda e levou à amputação de dois dedos – Marinho havia trabalhado a vida inteira limpando máquinas em fábricas de calçados sem sofrer nenhum acidente semelhante, e ainda estava ansioso pela sua futura recuperação, já que acreditava que não conseguiria mais realizar seu trabalho após a mutilação.
Também encontrei a história de um policial militar de Cruz Alta que ouviu de um colega que deveria empilhar três foguetes para que o rojão fosse lançado a uma altura mais elevada. Mais pra lá do que para cá no momento de acender o explosivo, ele se equivocou e acendeu o rojão debaixo da pilha, cuja saída estava obstruída pelos demais rojões empilhados. A força da explosão não só provocou a perda de três dedos como provocou queimaduras de segundo e terceiro grau no couro cabeludo.
Os danos
Acidentes desse tipo podem ser causados por uma série ampla de fatores, da imperícia do usuário (seja por falta de experiência, seja por embriaguez, ou até mesmo pela combinação descuidada de ambos) à própria qualidade dos explosivos, que pode ser afetada por um número bem grande de fatores, como embalagem, armazenamento e transporte. O que torna esse tipo de acidente em particular tão grave é a extensão dos danos que ele provoca no corpo humano. Se você se descuidar numa serra profissional e perder um dedo, há boa chance de ele ser reimplantado com sucesso. Já um acidente com fogos é quase garantia de que um implante será impossível, porque o calor e o impacto não cortam, mas queimam ou rasgam em pedaços os tecidos, os nervos e as artérias, impedindo qualquer tentativa de religamento. E não se trata da perda de um ou dois dedos, o que já seria traumático, mas queimaduras graves são mais suscetíveis a desenvolver infecções – e o resultado aleatório de uma explosão pode também comprometer nervos a ponto de o afetado perder parcialmente os movimentos da mão.
Passamos recentemente por mais um réveillon, com a retomada ardente das discussões sobre a necessidade ou não desse tipo de estalo, foguete, rojão etc. serem usados em celebrações de ano novo. Mas uma coisa que, para mim, é curiosa ao relembrar essa reportagem específica é o próprio enquadramento que a discussão foi tomando com o passar dos anos. Naqueles já longínquos anos 1990, discutia-se muito os fogos, principalmente esses acessíveis a qualquer um, como uma questão de segurança e saúde pública. Na época em que fiz aquela reportagem conversei com um cirurgião plástico da Unidade de Queimados do Pronto Socorro que me informou que havia uma questão crucial de classe a ser resolvida pelas campanhas de prevenção, dado que os foguetes segunda mão eram uma diversão estatisticamente mais consumidos pelas pessoas de menor poder aquisitivo, a quem claramente as múltiplas campanhas de conscientização não estavam chegando.
O debate atual
Eu teria que ir atrás de novas estatísticas, mas duvido que algumas dessas características do perfil médio do consumidor de fogos tenha variado tanto. O que mudou de modo radical, para mim, é a moldura do debate. Talvez seja um problema da minha bolha, mas faz tempo que eu não vejo campanhas de conscientização para o perigo que o uso dos fogos representam para quem os usa, e sim uma série de manifestações em larga escala de natureza ambiental, contra o ruído provocado pelos fogos e como ele afeta pessoas hipersensíveis ao ruído, como idosos, crianças e aqueles que se enquadram em algum ponto do espectro autista. Outra preocupação constante tem sido o efeito desse tipo de comemoração em animais, dos pets domésticos à fauna silvestre.
Dois projetos de lei, aliás, um de autoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e outro de Fabiano Contarato (PT-ES) estiveram na pauta de comissões do Senado no fim do ano passado discutindo a proibição da fabricação, da venda e do uso de fogos de artifício que produzam ruídos. As comissões não se pronunciaram a respeito, devem seguir a análise neste ano, mas pelo que li em um material da própria Agência Senado o discurso dos dois autores dos dois projetos semelhantes é mais ou menos o mesmo: suas propostas representam um “meio-termo” entre proibir os fogos de modo mais amplo, com potenciais efeitos danosos na indústria nacional, e atender às reivindicações que começaram a ser mais levantadas pelos grupos preocupados com os efeitos dos ruídos (e que se tornaram mais frequentes dos anos 2000 para cá, entre outras coisa graças ao poder de articulação e replicação proporcionado pelo atual panorama digital das redes sociais).
Fogos não me encantam mais, eu jamais seria otário de hoje em dia, tendo visto o que vi e sabendo o que sei, eu mesmo lançar um, mas me parece curioso como a discussão mudou de foco. Para começo de conversa, me parece sempre nessa discussão haver uma confusão entre duas frentes afetadas. Existem as queimas de fogos profissionalizadas, promovidas por empresas ou entes públicos e que se tornaram cada vez mais elaboradas ao longo das últimas décadas. Essas, com certeza, são fáceis de controlar e rastrear. Imagino que o que os projetos estejam mirando seja a ampla variedade de fogos vendidas em lojas de varejo acessíveis a qualquer indivíduo – um tipo de produto, como já comentamos, muito comprado por consumidores de baixa renda. Imagino que uma lei nacional teria mais sucesso em proibir no Brasil a circulação de foguetes de fabricação importada, mas nunca é demais lembrar que nós aqui mesmo, em Porto Alegre, já temos uma proibição semelhante de natureza municipal e eu não deixei de ouvir nenhum estampido a menos por isso no Natal e no Ano-Novo, então como fazer esse tipo de proibição vingar?
Foguetes e balões
É uma situação que me lembra um pouco um conto de Rubem Fonseca chamado O Balão Fantasma, que abre seu livro O Buraco na Parede, de 1994. Na história, um investigador de polícia (aos moldes dos personagens masculinos recorrentes de Fonseca) faz parte de um grupo especial criado no Rio para impedir a queima de balões com suas consequências ambientais nefastas, como incêndios em áreas verdes. As outras duas participantes do grupo são duas mulheres, militantes ecológicas fervorosas, uma delas vinculada à Prefeitura e outra da agência federal de Meio Ambiente. Sendo um conto de Fonseca, é claro que as inquietações do policial estão menos na resolução do crime do que no instável caso amoroso que ele mantém com uma das mulheres com quem está trabalhando. O que me parece que Fonseca flagrou com precisão nesse conto foi o embate entre uma visão de mundo mais tradicional que, apesar de ter suas justificativas e antecedentes, estava agora na contramão da nova visão informada pelo espírito do tempo.
Embora seja seu trabalho debelar as turmas fabricantes de balões, o policial, de ascendência portuguesa como o próprio Fonseca, não deixa de admirar o arcabouço tradicional e social envolvido na fabricação dos balões. É uma forma de celebração trazida pelos portugueses e, no Rio, assumiu ao longo de décadas um sentido de expressão comunitária, já que muitos bairros da cidade, principalmente os menos confortáveis no espectro socioeconômico como as favelas, transformam a arte do balão aos céus no resultado de um esforço de um amplo número de pessoas da comunidade – um pouco como as escolas de samba antes de se tornarem um bem-comportado espetáculo turístico de apelo internacional.
Já as colegas de grupo do protagonista, e não é por acaso que a “nova forma” de ver o que “sempre esteve ali” seja representada por duas mulheres, não conseguem entender esse fascínio do protagonista pelo que é, no entender delas, um crime ambiental e nada mais. O conto também faz uma espécie de radiografia de como funcionava a queima de balões no Rio até aqueles anos em que esse tipo de celebração já havia caído na mira das autoridade e da opinião pública pelo seu risco ecológico. A montagem clandestina de um balão em partes, a necessidade de um perito para criar as buchas, a montagem clandestina, o transporte e mesmo a caça ao balão após ele subir aos céus – dado que é do interesse da comunidade que o soltou recuperá-lo quando ele cair.
Fonseca nesse conto claramente havia escolhido “um lado”, o que talvez torne sua radiografia do cenário algo comprometida. O protagonista e narrador é o investigador, logo, a narrativa compartilha parte de seu fascínio. As duas mulheres que o acompanham na força-tarefa são o tipo de caricatura de militante pouco razoável que na época talvez ainda fosse engraçada antes de virar meio que o discurso oficial da extrema-direita que ascendeu nos últimos anos. Mas há um elemento que ele apreende: a complexidade de relações que muitas vezes opõe uma visão progressista que se instala a partir de uma classe média ou alta ilustrada e que, em nome de um bem comum, acaba precisando realizar um embate contra as classes proletárias que seguem em hábitos tradicionais, principalmente os festivos, que servem como um desafogo, ainda que destrutivo.
O que virá disso é o que terá que vir, inevitavelmente. Não tenho dúvidas de que aos poucos os fogos com ruído desaparecerão do cenário ou serão drasticamente diminuídos (ao contrário do tom adotado por Fonseca em seu conto, não sentirei saudade alguma deles). Mas só gostaria que houvesse como combinar não apenas as pressões da indústria nacional e dos atuais grupos com a sua plataforma esclarecida, mas também a necessidade de um trabalho amplo de educação para que alguém não se coloque em perigo tentando sublimar por um instante as pressões cada vez mais pesadas da vida.
Afinal, fogo sem ruído também queima.