Se tem algo comum a todos nós é a tendência a sermos os nossos piores críticos.
Todos achamos que deveríamos fazer mais exercícios, estarmos mais presentes na vida dos nossos pais, economizar dinheiro para a velhice, dedicarmos mais tempo aos estudos ou à leitura.
Por vezes, esta autocrítica pode ser paralisante: quando nos vemos em tão má conta que supomos que ninguém vá gostar de nós, ou que nem valha a pena tentar aquela vaga de trabalho, por exemplo. Afinal, se nos julgamos com olhos tão mordazes, por que suporíamos que os outros seriam mais condescendentes?
Por sorte, entretanto, geralmente o olhar dos outros é mais generoso que o nosso próprio.
Mas nem sempre um tantinho de ódio por si é um problema. Aliás, eu arriscaria a dizer que sem estranharmos o que vemos no espelho – tanto o literal, mas também o metafórico -, dificilmente conseguimos fazer alguma coisa relevante no mundo.
O que me leva, caro leitor, a uma pergunta que volta e meia eu me faço no meu cotidiano como psicanalista: será que as pessoas conseguem realmente mudar? E o que significa isso?
Será que mudar tem a ver com ter a disposição para correr não sei quantos quilômetros por dia? Ou significa controlar mais os impulsos e não gastar com tanta coisa supérflua? Ou será que mudar quer dizer ser um melhor marido, filho ou pai? E onde estão estas referências do que seria melhor ou mais saudável?
Quando vemos essa questão bem de perto, percebemos que é muito difícil sequer definir o que seria mudar. Mas o que eu posso garantir a partir da minha experiência clínica é que é impossível transformar-se sem um pouco de ódio de si.
É só quando estamos insatisfeitos com nosso jeito de ser ou com as nossas atitudes que nós podemos nos perceber como divididos: quando o conflito que parecia externo (“as pessoas parecem não gostar de mim”) se torna uma batalha interna (“eu não gosto de mim mesmo”). Se a esta percepção de si a gente adicionar uma disponibilidade de ser outro (de alterar-se), estamos no melhor caminho para que uma terapia tenha efeitos.
Mas por que o ódio a si é tão importante?
Ora, se olharmos para as produções culturais de massa de nossa época, veremos que estamos imersos em um culto ateu à felicidade, uma seita que reza a cartilha das good vibes e do imperativo de “eu sou mais eu, eu estou no centro”. Uma cultura que glorifica o “eu mesmo” como uma entidade pagã à qual todo sacrifício deve ser feito: inclusive a oferta do próprio desejo em troca de status, adequação, fama…
O curioso é que este culto ao eu não surge apenas de forma explícita, como vemos nas falas das futuras subcelebridades de reality shows (“eu sou minha prioridade”). Há também toda uma indústria em torno da promessa de felicidade, desde aquela mais impositiva como a dos psicofármacos de última geração até aquelas mais sutis e pretensamente benevolentes como a do “autocuidado” e do bem-estar individual.
O que há de comum a boa parte destas estratégicas de busca de felicidade é uma espécie de alergia ao outro. Em termos bem atuais, na cultura da felicidade e da performance o outro é sempre tóxico.
Em tempos de inflação da crença na autonomia do eu e de atomização do indivíduo, a presença do outro é incômoda, a experiência da diferença abre uma ferida. Ou deveria abrir, na verdade: mais comumente, tendemos a silenciar o outro justamente porque se déssemos voz a ele teríamos que nos confrontar com a hipótese de não sermos assim tão autossuficientes.
O que é bastante óbvio, aliás, apesar de todo um discurso que procura apagar o fato de que desde cedo em nossas vidas o outro não está simplesmente fora de nós, mas é uma parte do nosso psiquismo. É só por termos sido cuidados, por exemplo, que aprendemos a nos cuidar. É a partir do olhar de um outro que nós temos ideia da nossa própria imagem.
Um exemplo prático disso ocorre quando passamos a frequentar um grupo diferente daquele com o qual estávamos habituados: estas pessoas têm vidas por vezes muito diferentes das nossas, não só no que se refere a hábitos, mas também a ideais e imperativos. Ou seja: estes “outros” trazem a notícia de que a nossa forma de viver não é única.
Talvez alguém que tenha dedicado a sua vida toda ao culto do corpo e à alimentação saudável, por exemplo, se sinta um pouco deslocado em um ambiente em que o olhar das pessoas não recai tanto sobre a aparência. Ou o contrário: alguém que tenha apenas circulado por ambientes supostamente “intelectuais” pode se ver em apuros quando confrontado com um mundo em que ser belo é uma insígnia de valor social.
Claro que estou falando de estereótipos e sei bem que somos muito mais multifacetados do que isso, mas estes exemplos são uma forma de explicitar para o leitor o quanto a nossa própria imagem depende inelutavelmente dos outros. Por isso posso afirmar com tranquilidade que não existe autoestima: nós sempre nos estimamos através dos olhos dos outros. A nossa própria vida só tem sentido quando endereçada seja para um grupo social, seja para uma cultura específica.
Até porque não somos seres autocontidos, não somos o nosso cérebro e as reações químicas que ali acontecem, antes sim, existimos na relação com os outros, nós somos brutalmente modulados pelos outros.
A leitura de que a alteridade é tóxica por muitas vezes surge como uma forma de se defender da sensação de déficit que sentimos quando não nos sentimos adequados ou amados pelo meio em que estamos inseridos. Quando nos comparamos com os outros e nos sentimos menores, não raras vezes dizemos que estamos em um ambiente tóxico – na verdade, se trata apenas de um código que não sabemos entender.
Assim, quando eu falo que uma certa dose mínima de ódio de si faz parte de toda tentativa de mudança, quero dizer que é perfeitamente normal e até salutar percebermos que este outro exterior que tanto nos ameaça também faz eco a um outro interno que nos habita e que nos julga, nos valora e, com sorte, nos suporta do jeito estranho somos.
O risco é que nós tragamos para dentro de nós este outro visto como tão tóxico a ponto de fazermos de nossa autorreflexão uma guerra química que devasta a nossa paisagem interna e nos torna refugiados de nós mesmos, seja por evitar o contato com o ambiente “hostil”, seja por tentarmos mimetizar ou performar o que supomos ser esperado de nós.
Por outro lado, a felicidade em excesso paralisa e obtura a nossa capacidade de tomarmos a nós mesmos como objeto de interesse, não no sentido de um culto de si e da própria personalidade, mas como um estranhamento que convide à mudança.
Mesmo após quase vinte anos de clínica eu ainda não consigo responder claramente se as pessoas conseguem ou não mudar radicalmente, mas o que eu já posso afirmar com alguma convicção é que o outro pode não ser o veneno, mas sim o remédio que permite que alguém estranhe a si mesmo e busque alterar-se, ser outro.