Há alguns anos uma conhecida contou em um mesa de bar que a sua resposta infantil à pergunta “o que você quer ser quando crescer?” era: “uma daquela meninas que dançam em cima da mesa”. Notando os semblantes curiosos de todos em volta, ela arrematou: “Stripper. Eu queria ser stripper”.
Constrangida pelo riso contido de todos em volta, ela sentiu que precisava dar mais algumas informações para aquela plateia já mais pra lá do que pra cá entre uma cerveja e outra: “Um dia eu passei pela sala e meu pai tava vendo um filme que tinha uma cena num strip club e eu achei que era aquilo que os adultos queriam que eu fosse, já que tava até na TV”.
Aquela mesa de bar virou uma psicanálise de botequim.
Passamos a falar sobre como nós respondíamos à fatídica pergunta quando éramos pequenos. Fomos lembrando do que falávamos quando pequenos: astronauta, bombeiro, jogador de futebol, professora… ou stripper.
Nenhum dos convivas tinha seguido na vida adulta o caminho prometido na infância. O astronauta virou psicanalista, o bombeiro se tornou um exímio advogado, o jogador de futebol trocou as chuteiras pelo bisturi, a professora agora é uma reconhecida jornalista e a stripper atualmente atende em consultório particular como psiquiatra.
Saímos daquele bar tropeçando na curiosidade por entender por quê dávamos aquelas respostas quando pequenos.
Foi só anos depois, com a prática clínica, que pude voltar àquela noite de etílicas fabulações e pensar um pouco mais sobre o assunto.
Fui percebendo, e convido aqui o leitor a uma viagem à própria infância, que as respostas que damos à pergunta sobre o que queremos ser quando crescer dizem na verdade muito sobre o que era esperado de nós e não tanto sobre o nosso próprio interesse.
Como seres já desde sempre imersos na cultura, carregamos conosco desde que nascemos os ideais sociais – na maior parte das vezes, quem faz a função de nos dar notícias desses ideais são os nossos pais ou cuidadores, mesmo que de forma um tanto alusiva, como ao parece bem interessado em um filme em que “uma menina dança em cima da mesa”.
Quando crianças nós somos muito perspicazes em perceber para onde os adultos olham. Fazemos a hipótese de que precisamos nos adequar ao que é esperado de nós para sermos amados por eles e, futuramente, pela sociedade. Ficamos tão atentos ao que supomos que gostariam que fôssemos que confundimos o nosso desejo com o desejo daqueles que nos cuidam e que nos apresentam o mundo.
Com alguma sorte e um tanto de frustrações isso vai mudando com o tempo e vamos nos tornando mais permeáveis ao que nos movimenta para além da ânsia de sermos amados.
Mas nós nunca conseguimos nos demitir completamente dessa tarefa de nos fazermos desejados pela cultura. O conflito entre quem supomos que devemos ser e quem realmente gostaríamos de ser nos acompanha por toda a vida. Em certa medida, todo adulto ainda guarda dentro de si aquela criança que, por ainda não ter vivido o mundo, olha para ele pelos olhos dos outros.
E isso talvez explique porque cada vez mais nos sentimos enganando alguém, a ponto de até termos inventado um termo para este fenômeno: síndrome de impostor. Expressão bastante infeliz, aliás, tendo em vista que esta sensação nada tem a ver com uma patologia, como a palavra “síndrome” sugere.
Antes, se trata da percepção do autoengano em que boa parte de nós recai: tomamos emprestados da cultura alguns ideais e fazemos como se fossem nossos, somente para ali adiante nos sentirmos vivendo uma vida que não é a nossa, uma versão nossa adaptada àquilo que inconscientemente supomos precisar performar para sermos amados. Algo que aprendemos desde pequenos: sempre nos medidos de acordo com um determinado ideal.
Neste sentido, nós nunca deixamos de estar endividados com aquela pergunta sobre o que queremos ser quando crescer: afinal, talvez essa indagação seja o protótipo da nossa relação com a cultura: sensíveis como somos ao que esperam de nós – ideal muitas vezes cristalizado nas celebridades e nos vizinhos cuja grama imaginamos mais verde -, nós volta e meia percebemos a nossa vida esvaziada de sentido, mesmo que sejamos supostamente “bem-sucedidos” para os padrões sociais.
Em tempos em que as narrativas de vida parecem cada vez mais padronizadas, não surpreende que sejamos tomados pela percepção de sermos impostores. Entretanto, diferente da leitura que entende esse fenômeno como um déficit entre a imagem de si que vemos e aquela que os outros vêem, acredito que o que está em jogo aqui é um desencontro entre o nosso próprio desejo e aquela vida que vivemos para nos adequar aos imperativos familiares e culturais.
Não se trata, portanto, de uma dissonância de imagens de si mesmo, mas entre aquilo que performamos e aquilo que realmente queríamos ser – mesmo que isso implique ter um salário menor ou gozar de menor prestígio social.
Afinal, no fundo, talvez aquela criança que fomos não estivesse assim tão a fim de ser astronauta, bombeiro ou médico, mas gostaria mesmo de continuar jogada no sofá vendo desenhos animados e tomando refrigerante.